Fian Brasil
Por Veruska Prado A. Weiss, Rute Costa, Mariana Santarelli e Pedro Biondi
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onceição. Gercina. Lindalva. Claudecir. Quatro mulheres da grande Recife. Quatro mulheres nordestinas de diferentes gerações. Quatro mulheres com trajetórias distintas e próprias. Quatro mulheres brasileiras. Quatro mulheres negras.
Poderíamos, com variadas abordagens, destacar o que cada uma traz de único e os fios invisíveis que ligam a vida delas nessas e noutras condições. Está aí um dos méritos do especial Caminhos da Alimentação: o que chega à mesa das mulheres negras, que a Gênero e Número lançou neste março de 2024.
É preciso dar vida aos números e extrair sua verdade, sem se deixar cegar por alguma vertente dela e enxergar além, trazer outras camadas de análise e de dados aos indicadores e estatísticas. Trata-se de um esforço estruturado e intencional de trazer à visibilidade as lutas e as dores humanas por trás das porcentagens.
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Nesse especial não é diferente. A apresentação das histórias de pessoas que vivem em domicílios semelhantes àqueles visitados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) traz outros dados e informações sobre a experiência de passar fome e tantas outras formas de exposição à violência.
Esse trabalho – mais especificamente, o enfoque em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) – é o que aproximou a FIAN Brasil da Gênero e Número. Melhor dizendo, a entidade e a equipe que produziu o estudo publicado no livro Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe Social nos Sistemas Alimentares. Uma aproximação desdobrada numa oficina para jornalistas com mais um parceiro comprometido com o desvelamento dessa realidade, o Nós, mulheres da periferia, que resultou ainda numa grande reportagem sobre as mulheres do Cerrado.
Mulheres do Cerrado lutam por “saborania” e soberania alimentar
No estudo, lançado no segundo semestre de 2023, exploramos, a partir do recorte temático da alimentação, a naturalização das desigualdades injustas e evitáveis, as iniquidades. A naturalização de tais diferenças influencia de forma central a construção de potenciais caminhos para sua superação, bem como a constatação de que resultam de relações e escolhas sociais, econômicas e culturais, entre outras. Os dados detalhados em Prato do Dia focalizam a inseparabilidade entre os diferentes fatores que nos moldam, formam e influenciam como indivíduos e sociedade. E mostram que reconhecer esses condicionantes sociais é fundamental para o enfrentamento das condições injustas.
No livro, a FIAN Brasil busca dar visibilidade às formas com que as injustiças produzidas pela sociedade contribuem para as violações do direito humano a alimentação e nutrição adequadas (Dhana) vivenciadas por brasileiras e brasileiros. O documento sintetiza o processo e os resultados de um estudo conduzido a partir de sobreposição e interação entre três dimensões estruturais da iniquidade no Brasil: gênero, raça e classe social. Foi baseado em análise textual extensa e de dados numéricos oriundos da última POF.
“Com a sobrecarga e o pouco acesso a renda, ultraprocessados são a única opção para muitas mulheres” , Veruska Prado, coautora do estudo Prato do Dia
A análise interseccional dos dados da POF – processo que colocou não somente o sexo da pessoa responsável pelo domicílio, como também a raça autodeclarada – ressaltou outras iniquidades. A segurança alimentar (acesso regular e permanente a alimentos) está presente em 76,8% dos lares chefiados por homens brancos, em 69,8% dos chefiados por mulheres brancas, em 58,1% dos domicílios chefiados por homens negros e em apenas 49,5% – menos da metade – daqueles em que as mulheres negras são as responsáveis. A insegurança alimentar, nas suas formas mais severas – insegurança moderada e grave (esta última, a fome) – está presente em 9,5% dos domicílios chefiados por mulheres negras, valor quase 4 vezes maior que o encontrado em lares chefiados por homens brancos.
As desigualdades e iniquidades expressas na alimentação das famílias chefiadas por (e também das próprias) mulheres negras constituem um marcador que, somado a outros, revela uma sobreposição de situações injustas. São esses mesmos lares que apresentam as piores condições de moradia, o menor acesso a água tratada e a rede de esgoto, o menor rendimento e a situação de trabalho mais instável (não formalizado). Tais dados nos permitem afirmar que não é possível superar a insegurança alimentar sem enfrentar o racismo e o sexismo, (re)produtores de barreiras à realização dos direitos humanos, em especial ao direito humano à alimentação adequada. Sistemas de opressão que, na outra ponta, produzem vantagens e proteção aos grupos sociais que ocupam espaços de poder e privilégios.
Essa realidade que, de tão reiterada e naturalizada, muitas vezes se dá como imutável, precisa ser implodida para a construção de uma nação minimamente cidadã.
“A alimentação ancestral é a cultura que resiste”, Sandra Chaves, coordenadora da Rede PENSSAN
Uma outra camada que nossa pesquisa expõe é justamente como essas questões aparecem (ou não aparecem) em textos públicos de organizações de diferentes setores da sociedade. Mergulhamos em materiais de associações de segmentos comerciais, movimentos sociais, entidades profissionais e academia. Artigos de opinião, matérias, revistas, entrevistas, livros, cartas abertas, posicionamentos, relatórios, textos científicos.
Como se pode imaginar, as comunicações dos setores de supermercados, do agro e da indústria de alimentos praticamente desconsideram as desigualdades e, mais ainda, seu viés perverso de engrenagem. Abordam o ideal de uma alimentação saudável por uma perspectiva muito focada no consumo e como se fosse uma questão de livre escolha, resolvida por meio da meritocracia. Mesmo na produção acadêmica, é raridade a busca das “causas das causas” – aquilo que há de estrutural –, assim como os necessários cruzamentos para examinar seus impactos.
Curioso é notar que porções tão diferentes da sociedade brasileira tendem a restringir, em sua leitura e seus posicionamentos, a dimensão de raça à cor pele, mais como um elemento de caracterização do que como aspecto central para qualquer análise relacionada ao tema da alimentação. Mais do que sintomático de um país que leva seu racismo em banho-maria. Também passa batido o modo com que área e lugar de moradia, raça/cor, sexo e orientação sexual pesam na balança.
“Políticas de combate à fome precisam priorizar mulheres”, Adriana Salay, historiadora que pesquisa renda e acesso a alimentos
O debate sobre desigualdade de gênero, quando presente, parte do sexo biológico, passando ao largo de implicações como a extrema vulnerabilidade que cerca as pessoas trans. Além da universalidade do ser mulher, inexistem reflexões sobre as distintas fases da vida.
Diante de um quadro como esse, não poderíamos nos contentar com o diagnóstico. Por isso procuramos caminhos e estratégias propostas em conferências e encontros nacionais atrelados a políticas públicas. Entendemos que devem ser a bússola para uma mudança definitiva e permanente pelo marco da justiça social. A partir da análise de documentos aprovados em 15 processos participativos de 2009 a 2021, identificamos potenciais estratégias para superar, finalmente, as desigualdades e iniquidades associadas ao contexto da alimentação e da nutrição.
Temos que seguir construindo políticas focadas em pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade social, mas não podemos desconsiderar, dentro desse conjunto, a existência de indivíduos e núcleos familiares que vivem em condição desumanizada e têm seu futuro ceifado em função de aspectos de formação histórica e cultural do Brasil. A invisibilização representa uma barreira a essa missão coletiva.
Nos últimos anos, a imprensa ampliou e qualificou sua cobertura sobre alimentação. Reflexo, com certeza, da volta da fome e da escalada da má-nutrição num governo golpista e neoliberal e em outro autoritário e negacionista (e, sim, também neoliberal), na nação que foi exemplo para o mundo no deciframento desse problema social (com Josué de Castro) e de seu enfrentamento (com Lula). Provável eco, também, da cobertura realizada por veículos independentes, alguns muito conscientes da centralidade da temática. Na média, porém, vamos encontrar nos portais e jornais um tanto das lacunas listadas – o que é um bom assunto para uma investigação científica similar.
Projetos de lei ameaçam agricultura familiar na merenda escolar
Por tudo isso, é extremamente bem-vindo um especial como Caminhos da Alimentação, que a partir de tempo dedicado aos números, constrói-se sobre boas escolhas editoriais. E que, ao entrar com método e respeito nas histórias pessoais, dá carne às estatísticas. Acompanhar no cotidiano Conceição, Gercina, Lindalva e Claudecir, sentar-nos às suas mesas, traz para o concreto o que é o desafio de alimentar uma família com dois salários mínimos, um ou menos; o que significa a economia do cuidado, com o tempo gasto na obtenção dos alimentos e no preparo das refeições, e no gesto da mãe que prioriza o prato do filho; e como situações do tipo sustentar dois filhos com autismo podem estar a descoberto no nosso sistema de proteção social.
Um conteúdo que aborda etapas do processo alimentar, muitas vezes esquecidas, e que evoca ainda a dimensão cultural da alimentação, com a onipresença do cuscuz; a importância e a insuficiência de programas de transferência de renda e distribuição de cestas; as redes de solidariedade, com as doações; a maior diversidade alimentar proporcionada pelo acesso à terra e à agricultura; e o avanço dos ultraprocessados (e de suas doenças) em regiões e classes sociais em que eram pouco presentes há dez anos.
Juntos, lidos com todo rigor e sem a dita neutralidade dos privilegiados, os números e o diário do “corre” não deixam dúvida: sistemas alimentares mais justos e sustentáveis são possíveis, necessários e urgentes. Nessa construção, cabe reiterar, o enfrentamento do racismo e do sexismo é uma tarefa incontornável.