O que fazer quando a vida desejada se anuncia morte repentina?

Eliza Capai, diretora do filme Incompatível com a vida e idealizadora do site incompativel.com.br, compartilha o que aprendeu sobre aborto depois de escutar que seu filho não sobreviveria fora do ventre

Abortar: Obstetrícia. Verbo intransitivo. Expulsar naturalmente o feto, ou retirá-lo por meios artificiais, sem que ele tenha condições de sobrevivência fora do útero.

Minha mãe nunca contou em público o que escreverei e só me sinto neste direito porque este crime já prescreveu. Depois de ter tido eu e minhas duas irmãs, ela engravidou novamente. Sem condições de criar mais uma criança, minha mãe realizou um aborto clandestino.

Ao chorar na maca, ouviu do médico, em tom ríspido, “se está em dúvida, não vou fazer”. Ela engoliu o choro e disse que tinha certeza. Quando aplicaram o anestésico, ela fixou os olhos na TV com a câmera de segurança do prédio, torcendo que nenhum policial chegasse ali enquanto estivesse sedada.

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Cresci decidida a nunca passar por uma situação daquela. Só tirei o DIU (dispositivo intrauterino) quando tive certeza que queria ser mãe e que estava preparada emocional e economicamente para isso. Quando minha menstruação atrasou e o teste deu positivo, senti uma alegria profunda e desconhecida. No final do terceiro mês de gestação, nos mudamos de São Paulo para a terra do pai de meu filho, Portugal.

No ultrassom morfológico das 14 semanas, realizado em uma clínica pública de Lisboa, a médica fez longos silêncios, entrecortados por perguntas e comentários estranhos. Voltei no dia seguinte para novos exames e fui encaminhada para o Pronto Socorro para que fosse confirmado que, em vocabulário médico, meu filho era “incompatível com a vida”.

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Abortar. Intransitivo. Figurado. Não se desenvolver, não vingar

Em menos de uma semana, o laudo já havia sido fechado. Como não fui capaz de fechar o crânio de meu filho? Como havia deixado o cérebro sair de sua cabeça? Que tipo de mãe eu era? Comecei a ter todas as crenças e todas as culpas. Chorei como nunca havia chorado.

Abortar. Figurado. Verbo transitivo direto e intransitivo. Fazer falhar ou falhar; frustrar, malograr.

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Revirei o google para entender o que poderia acontecer caso meu filho nascesse. Entendi que havia grande chance de perdê-lo ainda na gestação. Se ele nascesse, provavelmente morreria nos primeiros momentos. Não havia nenhuma chance de ele um dia andar, brincar ou sorrir.

Na semana seguinte, uma junta médica se reuniu e me aconselhou realizar uma IMG: Interrupção Médica da Gestação. Como o laudo foi fechado rapidamente, meu filho ainda não sentia dor. Interromper a gestação era a forma de evitar seu sofrimento.

Além disso, levar a gestação adiante trazia risco aumentado de morte para mim. Estava há duas semanas sentindo a barriga crescer e sabendo que meu filho morreria. Foi o mais próximo de enlouquecer que já cheguei. Foi o mais triste que já estive.

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Interromper. Verbo transitivo direto. Pôr termo a; fazer cessar.

Interrompi minha gestação em uma maternidade pública. Fiquei uma noite em observação e voltei para casa. Por questões de saúde prévias, tive complicações e fui internada com indicadores de septicemia.

O que teria acontecido se estivesse no Brasil e tivesse realizado um aborto clandestino? Inventaria uma mentira no hospital com medo de ser presa? Se o médico não tivesse investigado imediatamente meu útero e descoberto placenta retida atrás de um mioma, talvez eu tivesse morrido.

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Uma mulher morre a cada dois dias no Brasil em consequência de abortos inseguros. No mundo, são 47 mil por ano, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Senti muita raiva de nosso Estado que, em vez de nos acolher nesse momento, nos mata.

A maioria das mulheres com quem conversei no processo do filme Incompatível com a vida fecharam o diagnóstico tardiamente, aumentando o sofrimento dos casais. No processo do filme, entendi que havia a possibilidade de se realizar abortos legais nesses casos, mas que para isso é necessário judicializar. Ou seja, utilizar do precedente de aborto legal em caso de anencefalia, que é um tipo de malformação incompatível com a vida. Caberá ao juiz decidir se a gestação poderá ser interrompida ou obrigar a mulher a gestar por meses o filho que morrerá.

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Apenas 20% das mulheres que enfrentaram diagnósticos de malformações fetais incompatíveis com a vida no Brasil recorreram ao Judiciário para garantir o direito à interrupção da gestação (dados do Anis – Instituto de Bioética), o que sugere que a maioria não tem acesso a informações adequadas ou enfrenta barreiras para exercer esse direito.

Surgiu daí o sonho de realizar um site que acolhesse gestantes que recebem o diagnóstico de incompatibilidade, deixando claro os caminhos e desfechos possíveis: perder o feto ainda na gestação, levar a gravidez adiante com possibilidade de cuidados paliativos no nascimento ou interromper a gestação.

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O site, lançado em novembro de 2024, também traz informações sobre o passo a passo jurídico para realizar a interrupção e links para acolhimento ao luto, além de uma página voltada aos profissionais de saúde.

A partir de minha experiência, luto pelo acolhimento de quem passa por perdas gestacionais e neonatais, para assegurar o direito de decidir o que fazer e para debatermos o aborto em caso de incompatibilidade com a vida.

Quando se proíbe a interrupção de uma gestação de feto incompatível com a vida, ou seja, de feto que não irá sobreviver fora do útero e cujo nascimento pode resultar em grande sofrimento para o bebê em sua breve vida, se escancara a hipocrisia de nossas leis e costumes.

Qual argumento respeitável se pode ter em defesa da criminalização de abortos em casos assim? Como defender que vá presa uma pessoa que opta por abreviar uma gestação que inevitavelmente terminará em morte fetal ou do bebê? Como obrigar essa mulher a seguir gestando, mesmo sabendo do risco à sua saúde física e mental?

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Entendo que há necessidade de conversar de forma aberta sobre a descriminalização da interrupção não apenas médica, mas também voluntária, da gravidez. Para que mulheres como minha mãe, como a mãe de tantas de nós, tenham o direito de contar suas histórias e tenham direito a histórias menos violentas e traumatizantes.

Ao mesmo tempo que lançamos o site incompativel.com.br, sonhando em avançar no debate e na empatia, e termino de escrever este texto, o Congresso se prepara para votar a PEC 164/12, que inclui a expressão “desde a concepção” no artigo 5o, quando fala da inviolabilidade da vida. A PEC eliminaria os três casos em que o aborto legal é permitido no Brasil, provavelmente aumentaria o numero de abortos clandestinos e o silêncio que paira sob eles.

Uma em cada sete mulheres de de 40 anos já abortou. Poucas têm o direito que eu tenho, de falar isso publicamente. Precisamos romper o silêncio e o estigma do aborto para promover um diálogo aberto e empático sobre a perda e a escolha.

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Eliza Capai

Eliza Capai estreou seu quarto longa-metragem “Incompatível com a vida”, no Festival É Tudo Verdade (2023), onde foi premiado como Melhor Filme e pré-qualificado para o Oscar. O documentário é sua obra mais íntima e reflete sobre perda gestacional, aborto e luto. ​​Eliza assinou a direção da primeira série brasileira true crime original Netflix. "Elize Matsunaga: Era uma vez um crime" (2020) foi sucesso de público, pautando as redes sociais com debates sobre relacionamento tóxico e machismo institucional. Seu terceiro longa, "Espero tua (re)volta", estreou na Berlinale (2019), com os prêmios da Anistia Internacional e o da Paz. O documentário participou de mais de 100 festivais, e ganhou mais de 20 prêmios. Em 2016, lançou seu segundo longa: “O jabuti e a anta” reflete sobre as gigantes hidrelétricas amazônicas através de ribeirinhos e indígenas. Em 2014 seu curta “Severinas”, sobre a autonomia feminina no sertão, foi finalista do Prêmio Garcia Marques de Jornalismo Ibero-americano. Seu primeiro longa, "Tão Longe é Aqui" (2013), discute a situação feminina a partir de uma viagem pela África e foi lançado com o prêmio de Melhor Filme na Mostra Novos Rumos do Festival do Rio, entre outros prêmios no Brasil e no exterior. Eliza assina a direção e roteiro de diversos curtas-metragens e séries para TV e web, incluindo "#Resistência" (2017), lançando de forma independente em mais de 80 cidades, o premiado "No devagar depressa dos tempos", e a série "É proibido falar em Angola" realizada em parceria com a Agência Publica de Jornalismo Investigativo.​ Formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo, Eliza completou sua formação como bolsista no OpenDocLab/MIT.

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