Editorial: Estigma e criminalização do aborto impedem debate qualificado no Brasil

Homem vestido com jaleco branco caminha pelo corredor de um hospital
Foto: Imagem do filme "Verde Esperanza: Aborto legal na América Latina", produzido pela Gênero e Número

Aline Gatto Boueri

Diego Nunes da Rocha

No Brasil, o aborto é permitido em três casos: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. De acordo com o artigo 217-A do Código Penal, “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos” é considerado estupro de vulnerável. Logo, a interrupção da gestação é um direito de todas as crianças vítimas desse tipo de crime.

No entanto, em 2023, 319 menores de 14 anos foram hospitalizadas no sistema público de saúde para tratar algum tipo de aborto. Destas, apenas 86 realizaram o procedimento por razões médicas e legais. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS), que usa a variável sexo (homens/mulheres) e não disponibiliza estatísticas relacionadas à identidade de gênero das pacientes.

Outras 48 meninas só chegaram ao sistema de saúde depois de iniciarem o procedimento. Seus casos foram registrados como falha na tentativa de aborto, categoria utilizada quando a internação acontece para a conclusão da interrupção da gravidez. Crianças negras representam uma de cada quatro das 135 hospitalizações desse tipo no SUS, considerando também adolescentes e adultas de todas as raças.

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319

meninas menores de 14 anos

hospitalizadas por aborto

[2023]

O número de hospitalizações de meninas negras é 5 vezes maior que o de meninas brancas

248

negras

50

brancas

8

13

sem informação

indígenas

Meninas negras são

1 em cada 4

pessoas hospitalizadas por falha na tentativa de aborto

Hospitalizações por aborto legal

e falha na tentativa

48

86

razões médicas

e legais

Falha na

tentativa

3 indígenas

6

76

9

37

0 indígenas e amarelas

2 sem informação

0 amarelas

1 sem informação

*Outras causas de hospitalizações por abortos são aborto espontâneo, complicações consequentes de aborto gravidez ectop molar, não especificados e outros.

Fonte sih/sus - A base usa a variável sexo (homens/mulheres) e não disponibiliza estatísticas relacionadas à identidade de gênero das pacientes.

319

meninas menores de 14 anos

hospitalizadas por aborto

[2023]

O número de hospitalizações de meninas negras é 5 vezes maior que o de meninas brancas

248

negras

50

brancas

13

sem

informação

8

indígenas

Meninas negras são

1 em cada 4

pessoas hospitalizadas por falha na tentativa de aborto

Hospitalizações por aborto legal

e falha na tentativa

86

48

razões médicas

e legais

Falha na

tentativa

3 indígenas

6

76

9

37

0 indígenas e amarelas

2 sem informação

0 amarelas

1 sem informação

*Outras causas de hospitalizações por abortos são aborto espontâneo, complicações consequentes de aborto gravidez ectop molar, não especificados e outros.

Fonte sih/sus - A base usa a variável sexo (homens/mulheres) e não disponibiliza estatísticas relacionadas à identidade de gênero das pacientes.

O número pode parecer baixo comparado com as mais de 151 mil internações por aborto no ano passado, mas é alto se considerarmos que a chegada dessas 48 meninas aos hospitais da rede pública com um aborto incompleto é uma evidência de que o Estado brasileiro falhou em protegê-las e falhou em repará-las.

As 135 internações por falha na tentativa de aborto também são um número alto quando pensamos que a descriminalização e a legalização do procedimento poderiam zerar as hospitalizações desse tipo se pessoas gestantes tivessem seus direitos reprodutivos respeitados integralmente no Brasil.

ler Para cada criança com acesso ao aborto legal, 31 dão à luz em Roraima

151 mil

mulheres hospitalizadas por aborto

[2023]

103 mil

negras

40 mil

brancas

2 em cada 3 hospitalizações por aborto são de mulheres negras

6 mil

2 mil

sem informação

amarelas

637

indígenas

Hospitalizações por aborto legal

e falha na tentativa

2,9 mil

135

razões médicas

e legais

% população

entre mulheres

Falha na

tentativa

1% amarelas

44%

30%

18%

brancas

81%

67%

55%

negras

1% indígenas

0% indígenas e amarelas

0% indígenas

0,4% amarelas

*Outras causas de hospitalizações por abortos são aborto espontâneo, complicações consequentes de aborto gravidez ectop molar, não especificados e outros.

Fonte sih/sus - A base usa a variável sexo (homens/mulheres) e não disponibiliza estatísticas relacionadas à identidade de gênero das pacientes.

151 mil

mulheres hospitalizadas por aborto

[2023]

2 em cada 3 hospitalizações por aborto são de mulheres negras

103 mil

negras

40 mil

2 mil

brancas

amarelas

637

indígenas

6 mil

sem informação

Hospitalizações por aborto legal

e falha na tentativa

% população

entre mulheres

55%

44%

negras

brancas

1% indígenas

0,4% amarelas

135

81%

18%

Falha na

tentativa

0% indígenas

e amarelas

2,9 mil

67%

30%

razões médicas

e legais

0% indígenas

1% amarelas

*Outras causas de hospitalizações por abortos são aborto espontâneo, complicações consequentes de aborto gravidez ectop molar, não especificados e outros.

Fonte sih/sus - A base usa a variável sexo (homens/mulheres) e não disponibiliza estatísticas relacionadas à identidade de gênero das pacientes.

ler Ofensivas contra o aborto legal na Câmara dos Deputados

É preciso lembrar ainda que o medo de uma denúncia, de maus tratos ou de negligência no atendimento impede quem procura o hospital de relatar que buscou ajuda médica em meio a uma interrupção voluntária da gravidez.

Assim, abortos voluntários que começam fora do sistema de saúde podem ser registrados em outras categorias, como aborto espontâneo ou aborto não especificado. Quando olhamos para elas, mulheres e crianças negras – que compõem 55% da população feminina brasileira – também estão sobrerrepresentadas.

ler Portugal, Espanha e Uruguai: o que aconteceu após a legalização do aborto?

Quase metade (67.243) das mulheres que procuraram o SUS por um aborto em 2023 tiveram seus casos registrados como aborto espontâneo. Nesta categoria, 71% são negras. Outras 17.494 hospitalizações foram registradas como aborto não especificado e 67% delas são de mulheres negras.

Já os abortos por razões médicas e legais representam somente 2% dos procedimentos realizados no sistema público hospitalar e em 67% dos casos as pacientes são negras. Entre crianças, das 86 meninas que interromperam a gestação de forma legal, 76 são negras.

ler Aborto em pílulas: série de vídeos sobre aborto com medicamentos

Neste 28 de setembro, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, a Gênero e Número quer lembrar que, especialmente no caso de crianças, mas não apenas delas, o estigma que acompanha a criminalização agrava a desproteção.

Além de violar direitos reprodutivos – logo, direitos humanos de pessoas que gestam -, a legislação sobre aborto vigente no Brasil também contribui para a distorção e a produção de dados que não refletem o quadro gravíssimo de abandono ao qual  mulheres e meninas que querem interromper uma gestação são empurradas.

Mudar esse cenário é urgente e a Gênero e Número acredita que a produção e a análise de dados de qualidade melhoram o desenho e a implementação de políticas de prevenção e cuidado. A  divulgação desses dados, por sua vez, amplia o debate público e, principalmente, ajuda a construir argumentos para a garantia de direitos.

Nós não estamos dispostas a aguentar um pouco mais.

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Aline Gatto Boueri

Jornalista formada pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECo-UFRJ), colabora com a Gênero e Número desde 2017. Metade tijucana e metade porteña, cobre política latino-americana desde 2013, com foco em direitos humanos, feminismos, gênero e raça. Também cuida de criança todos os dias.

Diego Nunes da Rocha

Diego Nunes da Rocha é graduado e mestre em Ciências Sociais pelo PPGSA/UFRJ e doutorando em Sociologia no IESP-UERJ. Pesquisador associado do Ceres (Centro para o Estudo da Riqueza e Estratificação Social), Diego tem interesse em estratificação social, em especial no campo educacional. É analista de dados da Gênero e Número.

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