Editorial: Isto não é uma nota de repúdio

No país racista e militarizado, a polícia bolsonarista fala fino com terroristas de verde e amarelo e desce o sarrafo em pretos, estudantes e professores

Maria Martha Bruno

Se pudéssemos contabilizar as notas de repúdio emitidas no governo de Jair Bolsonaro, quantas seriam? Legislativo, Judiciário, entidades de classe, organizações da sociedade civil. Nenhuma delas, no entanto, freiou o ímpeto golpista do ex-presidente e de seus cúmplices e seguidores.

Por isso, mesmo depois da festa democrática da posse de Lula, Brasília foi palco de um teatro acintoso e vira-lata, que copiou os Estados Unidos em um de seus piores exemplos, a invasão ao Capitólio de 6 de janeiro de 2020. Uma cópia protagonizada por fanáticos seguidores de Jair Bolsonaro, governante que deixou um rastro de destruição no país — mortos por covid, políticas públicas interrompidas, aumento da fome e das armas na casa dos brasileiros, para ficar em poucas tragédias — e fugiu para a Flórida, terra da fantasia que atrai antipátrias (Bolsonaro não é patriota, é lambe-botas) da América Latina que se deslumbram com aquela península tropical.

Acostumadas a ver pretos e favelados morrendo de balas achadas no Rio de Janeiro semana sim, semana também, vimos a PM de Ibaneis Rocha estendendo o tapete vermelho para uma turba que destruiu patrimônio público e ameaçou o Estado Democrático de Direito.

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Bolsonarizadas, as forças de segurança são lenientes com brancos em verde-amarelo, mas não poupam certas classes e raças — pretos, favelados, jornalistas, professores, estudantes, indígenas — de balas, spray de pimenta e esculachos.

Afinal de contas, a propalada democracia, tão defendida nas notas de repúdio, nunca chegou aos grotões do Brasil, sempre acostumado ao peso dos coturnos e cassetetes. Para nós, que cobrimos raça e gênero, esta diferença é retrato também da desigualdade de acesso a direitos e deveres: uns podem invadir com conforto o coração do poder e conspirar contra o Estado, enquanto outros morrem dentro de casa pelas mãos do Estado. 

Além disso, os atos terroristas também voltaram a repetir a violência contra a imprensa. Foram registrados, pelo menos, 26 ataques a jornalistas na cobertura da invasão da Praça dos Três Poderes e desmontes de acampamentos em frente aos quartéis, em várias cidades brasileiras, segundo Abraji e a Fenaj. Esse cenário de hostilidade e violência se acentuou durante o governo Bolsonaro e o processo eleitoral, como mostramos na pesquisa “O Impacto da desinformação e da violência política na internet contra jornalistas e comunicadoras e LGBT+”: 86% perceberam aumento da desinformação desde que Bolsonaro foi eleito presidente.

A tentativa de golpe (mais um contra um governo do PT) vai deixar marcas, mas é também uma chance de um pacto de governabilidade em torno de um presidente legitimamente eleito, com ciência de que há uma metade do país contrária a este projeto de sociedade. Passada a posse de Lula, a realidade se impôs e pode fortalecer as forças democráticas, como nós, na sociedade civil e na imprensa, no enfrentamento da truculência e autoritarismo da extrema-direita.

Quando do anúncio de Silvio Almeida e Anielle Franco para os ministérios de Lula, lembramos o país mal resolvido com duas chagas do passado: a escravidão e a ditadura militar. É hora de colocar em prática o “Sem anistia!” que ecoou no discurso de Lula no parlatório do Planalto para garantir a “Democracia para sempre”, que o presidente prometeu também na posse. Na Gênero e Número, estaremos empenhadas também em uma “Democracia para todos”, na qual o peso da lei se faça sentir independente da condição de raça, classe, gênero ou política dos réus.  

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Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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