Desigualdades de gênero na ciência brasileira

As desigualdades de gênero na ciência e no ensino superior são relativamente conhecidas ao redor do mundo. Com maior ou menor variação em intensidade de um país a outro, assimetrias atingem as mulheres cientistas em quase todas as partes do globo.

Além das diferenças de magnitude, os países também lidam de maneira diferente com esse problema. Um ponto de partida geral é o diagnóstico da conjuntura. Para enfrentar uma disparidade é preciso conhecê-la. É a partir da produção de indicadores sociais que conseguimos entender melhor quais políticas públicas podem ser formuladas para melhorar a vida da população. A própria difusão de estatísticas oficiais já é uma política pública. Os governos elegem aquilo que priorizam como informação a ser difundida sobre a sociedade.

A partir de resultados preliminares da pesquisa “Diversidade na Ciência Brasileira”, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), com apoio do Instituto Serrapilheira, traçamos um breve panorama das desigualdades de gênero no campo científico e mencionamos algumas das medidas que têm sido adotadas para combatê-las.

A análise das hierarquias e sub-representações na ciência brasileira enfrenta uma dificuldade geral: a baixa disponibilização de dados sobre gênero e raça. O Censo da Educação Superior é o que temos de mais avançado no que diz respeito a discussões sobre os primeiros estágios de carreira.

Trabalhos como os da equipe do NIED-IFCS-UFRJ e do CERES-IESP-UERJ, que se baseiam no Censo, apontam para as intensas disparidades de gênero, raça e classe nas composições de cursos de graduação, com uma divisão pronunciada de perfis sociais em certas áreas em detrimento de outras.

Em contrapartida, avaliações interseccionais sobre a pós-graduação e a produção científica nacionais esbarram em uma série de limitações nos levantamentos, como o baixo escopo de questões, a falta de periodicidade e a alta taxa de respondentes que preferem não declarar cor/raça.

Duas plataformas teriam potencial para prover melhores evidências se não fossem suas lacunas: a Plataforma Lattes e a Plataforma de Dados Abertos da CAPES. Na primeira, a autodeclaração de cor/raça não é obrigatória e a proporção de não resposta é grande. A informação também é de difícil acesso, o contrário do que se espera de espaços de gestão de informação pública. Na segunda, além da ausência de dados brutos sobre cor/raça, não temos nem sexo, nem identidade de gênero.

A pesquisa do GEMAA busca contornar esses empecilhos em fases progressivas. Os primeiros indicadores sociais que produzimos se referem à dicotomia “feminino” e “masculino”. Nela, gênero é tomado como uma construção social associada aos nomes atribuídos a determinados sexos na população brasileira, o que não esgota, é claro, os modos de experimentar discriminações e desigualdades na ciência. Os resultados de identidade de gênero e raça, assentados na realização de um survey ou de heteroclassificações (no quesito cor/raça), serão divulgados no futuro.

No que toca ao grupo de mulheres – ou “feminino” – nota-se o crescimento da formação de doutoras, mas a persistência de uma dificuldade de progressão na carreira científica marcada pelo gênero.

Ainda que mulheres sejam maioria com o título de doutorado, na docência da pós-graduação elas encontram paridade ou predominância somente em 34% das áreas. Mulheres participam mais na docência em disciplinas que possuem mais mulheres também formadas em doutorado.

Gráfico mostra a distribuição de homens e mulheres na ciência brasileira. O primeiro gráfico de barras apresenta as grandes áreas de conhecimento e mostra a relação entre mulheres tituladas em doutorado e professoras permanentes. Em todas as grandes áreas, a porcentagem de mulheres tituladas em doutorado é maior do que professoras permanentes. São elas: ciências da saúde, ciências biológicas, linguística, letras e artes, ciências humanas, multidisciplinar, ciências agrárias, ciências sociais e aplicadas, ciências exatas da terra e engenharias. Em destaque, lê-se que 54% dos titulados em doutorado são mulheres, enquanto 58% dos professores permanentes são homens. Logo abaixo um gráfico de barras mostra a relação entre tituladas em doutorado e professoras permanentes por área de conhecimento. Em ordem das áreas com mais mulheres tituladas em doutorado, são elas: nutrição, enfermagem, ciência de alimentos, serviço social, farmácia, saúde coletiva, psicologia, educação, ciências biológicas, biotecnologia, odontologia, linguística e literatura, medicina veterinária, medicina, biodiversidade, interdisciplinar, comunicação e informação, ensino, educação física, antropologia / arqueologia, arquitetura, urbanismo e design, ciências ambientais, química, zootecnia / recursos pesqueiros, ciências agrárias, planejamento urbano e regional / demografia, sociologia, artes, história, administração pública e de empresas, ciências contábeis e turismo, geociências, ciência política e relações internacionais, geografia, direito, materiais, economia, engenharias, ciências da religião e teologia, matemática / probabilidade e estatística, filosofia, astronomia / física, ciência da computação. Serviço social, Artes e Ciências da computação são as únicas áreas com mais professoras permanentes que tituladas doutorandas.

Embora haja variedade de acordo com a área de conhecimento, há perda de contingente feminino em quase todos os casos, ou seja, a proporção de docentes mulheres é menor que a de doutoras mulheres.

Nas Ciências Agrárias, as mulheres chegam a 51% entre aqueles que obtêm o título de doutorado, mas são só 26% das professoras permanentes. Na Economia, temos 37% de doutoras e 20% de docentes, na medicina, 61% de doutoras mulheres, enquanto o número chega a 45% entre as professoras. É perceptível, ainda, a baixa participação de mulheres como doutoras em Astronomia/Física (26%), enquanto há predominância do grupo na área de enfermagem (86%), o que dá um indício da divisão sexual do trabalho científico.

A dificuldade de progressão no mercado de trabalho pode ser referida como “efeito tesoura”. A expressão é usada para ilustrar como as mulheres são paulatinamente cortadas dos estágios profissionais de maior poder no campo acadêmico. As políticas públicas direcionadas à resolução da disparidade de gênero na ciência ainda são relativamente raras e muitas vezes pontuais, apesar de mostrarem alguns avanços recentes.

Parte das políticas analisadas nos editais acadêmicos indicam a possibilidade de preferência para a candidatura de mulheres, ainda que sem determinações concretas para as etapas de avaliação. Por isso são problemáticas, uma vez que dependem de critérios incertos ou subjetivos ao longo do processo seletivo.

Por outro lado, há alguns avanços tímidos nos últimos anos no que diz respeito a atenuar os impactos da maternidade na carreira científica. Medidas como a licença maternidade (Lei nº 13.536, instaurada em 2017) de quatro meses para as pós-graduandas, com direito à bolsa e possibilidade de prorrogação do prazo, aliviam o cenário dramático enfrentado pelas mulheres que optam por ser mães durante o mestrado ou o doutorado, mas ainda cobrem uma temporada muito pequena.

Mais recentemente, a incorporação do período de licença maternidade ao Currículo Lattes, determinada a partir de 2021, pode favorecer a produção de indicadores sociais e a confecção de iniciativas direcionadas a apreender distorções em produtividade científica, que prejudicam as mulheres com filhos, especialmente as mulheres negras. Os casos de cuidado com outros familiares, entretanto, permanecem fora do radar das métricas de avaliação.

Um dos formatos de política mais relevantes instituídos para aumentar a diversidade de gênero na ciência é a definição de uma pontuação especial na análise de candidaturas de mulheres que foram mães antes de concorrer a concursos públicos ou a editais de financiamento de pesquisas. Tais medidas, aplicadas de diferentes maneiras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), buscam evitar que o direito à licença maternidade penalize o progresso da carreira de mulheres, que idealmente passam por esse período sem produzir academicamente.

No âmbito estadual, a Comissão de Equidade, Diversidade e Inclusão da Faperj, inaugurada no Rio de Janeiro este ano, já difundiu o lançamento de um edital especial para jovens cientistas mulheres. Ao redor do país, diferentes agências de fomento têm passado a dar mais atenção às desigualdades, algo que vem acontecendo de modo similar nas universidades públicas.

Isso é uma resposta à própria organização da comunidade científica, que em movimentos como o Parent in Science ou a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, coloca na agenda as discriminações específicas do campo de produção e circulação de conhecimento. Não obstante, ainda temos muito que caminhar. A diversidade não é só uma questão de justiça social, pois também representa maior potencial de inovação nas ideias e concepções da ciência.

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Marcia Rangel Candido

Marcia Rangel Candido é subcoordenadora de pesquisas no GEMAA e pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), com bolsa Faperj nota 10. É ainda editora assistente de DADOS - Revista de Ciências Sociais.

Marcelle Felix

Marcelle Felix é mestra e doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP - UERJ) e formada em Jornalismo pela ECO-UFRJ. Pesquisadora do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), Marcelle se interessa pela pesquisa de relações raciais e de gênero, o que abrange as áreas da comunicação e ciência.

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