Igualdade de gênero como mecanismo de enfrentamento à pobreza

Dia de abertura da 68CSW. Foto: UN Woman/Ryan Brown

Entre 10 e 22 de março, representantes de governos, sociedade civil, especialistas e ativistas se reuniram para o 68° período de sessões da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW), o maior encontro da ONU sobre igualdade de gênero.

Durante o evento, o Pacto Global da ONU – Rede Brasil mobilizou sua rede com a missão de debater – em diferentes esferas – a importância do comprometimento das empresas na defesa dos direitos humanos das mulheres e meninas, especialmente, daquelas que enfrentam múltiplas vulnerabilidades.

A CSW é o principal fórum de negociação e monitoramento dos compromissos internacionais sobre direitos humanos das mulheres. O documento final reconhece que aquelas que vivem na pobreza se tornam “amortecedores de choque” em tempos de crise e que esforços mais incisivos são urgentes para aumentar os recursos necessários para enfrentar a feminização da pobreza.

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Globalmente, 10,3% das mulheres vivem na extrema pobreza e, de acordo com dados da ONU Mulheres e da ONU DESA (Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas), se os padrões atuais persistirem, a previsão é de que 8% da população feminina do mundo (342,4 milhões de mulheres e meninas) viverá com menos de US$2,15 por dia até 2030.

No Brasil, segundo dados do IBGE, a taxa de pobreza foi de 31,6% em 2022. Porém, 40% da população negra eram pobres, o dobro da taxa da população branca (21%). O arranjo domiciliar formado por mulheres pretas ou pardas, sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos, concentrava a maior incidência de pobreza: 72,2% dos moradores desses domicílios eram pobres.

Para o Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres, o progresso em direção ao fim da pobreza precisa ser 26 vezes mais rápido para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030. Tudo isso em um contexto em que fica cada vez mais evidente que o empoderamento econômico das mulheres, incluindo o financiamento para proteções sociais e sistemas de cuidado, é fundamental para alcançar a igualdade de gênero e, consequentemente, os demais 16 ODS.

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Igualdade de gênero e enfrentamento à pobreza 

A 68CSW pautou suas discussões justamente na importância do investimento em mulheres e na igualdade de gênero como mecanismo de enfrentamento estrutural à pobreza como estratégia crucial para construir um mundo mais seguro, inclusivo e igualitário para todas as pessoas.

Como recomendações, a Comissão focou em cinco grandes temas: garantir acesso a empregos de qualidade para mulheres; prevenir a discriminação no local de trabalho; investir em serviços de cuidado para criar empregos; transitar para economias sustentáveis que incluam as mulheres; e acabar com a violência de gênero para criar sociedades estáveis.

Cada um desses pontos mereceria elaboração e reflexões aprofundadas, mas vamos destacar e provocar aqui que as disparidades no investimento, o uso de recursos e a distribuição de renda (incluindo as desigualdades salariais) não são meros resultados do funcionamento “neutro” do mercado, mas consequências diretas e intencionais de políticas econômicas que favorecem os interesses de determinado grupo em detrimento de outros. Essas políticas aprofundam desigualdades sociais que sustentam modos de vida excludentes e colocam em risco toda a espécie humana.

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Destaco aqui o item 75 (d) das Conclusões, sobre a integração de uma perspectiva de gênero nos compromissos de financiamento para o desenvolvimento, que determina que governos e outras partes interessadas devem incentivar o setor privado a contribuir para o avanço da igualdade de gênero, buscando garantir pleno emprego e trabalho decente para mulheres, salário igual para trabalho igual ou trabalho de igual valor, oportunidades iguais e proteção contra discriminação e abuso no local de trabalho.

Ao reconhecer que análises econômicas podem negligenciar complexidades nas relações e assimetrias de poder, bem como das estruturas sociais que influenciam a distribuição de recursos e oportunidades, a Comissão destacou a inadequação da arquitetura financeira internacional, principalmente diante de um mundo imerso em crises. A partir disso, exigiu reformas que facilitem a mobilização de recursos para promover a igualdade de gênero.

Isso inclui medidas como alívio do endividamento, taxação progressiva e uso de recursos públicos e privados para combater a feminização da pobreza e promover políticas sensíveis a gênero (e raça!), como a ampliação da representação e participação das mulheres na esfera econômica, além do apoio a empresas fundadas e/ou lideradas por mulheres.

O mito de uma economia “neutra” e do capitalismo como sistema “natural”, desprovido de ideologias, é frequente (e erroneamente) defendido para justificar pressupostos, valores e interesses que refletem – e aprofundam – as estruturas de poder atuais. Trata-se, no entanto, de uma visão que negligencia a realidade complexa e os efeitos sociais e políticos que sistemas econômicos têm sobre diferentes grupos dentro da sociedade.

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Em uma macabra coincidência, justamente durante os debates da CSW, soubemos, com tristeza, que entidades empresariais e empresas resolveram judicializar o cumprimento da Lei de Igualdade Salarial, pleiteando sua inconstitucionalidade. Elas alegam que os relatórios governamentais exigidos usam critérios simplificados, como média salarial de uma categoria, sem considerar aspectos como senioridade e tempo de serviço, além de “risco e dano reputacional” por conta de “cancelamentos digitais”.

“Curiosamente”, o levantamento feito com base nos dados salariais já enviados de 49.587 empresas, que somam quase 17,7 milhões de empregados, confirma o que as pesquisas do campo vinham indicando: mulheres ganham 19,4% menos que homens, a remuneração média de mulheres negras corresponde a 68% da média, enquanto a de homens brancos é 27,9% superior à média, em cargos de gestão, a diferença de remuneração chega a 25,2%, e o cuidado com os filhos favorece os homens no mercado de trabalho, enquanto penaliza as mulheres.

Se histórica e sistematicamente, homens cis, brancos e pertencentes às elites econômicas têm sido desproporcionalmente beneficiados pela ideia de que “dinheiro não vê cor, credo ou gênero”, a concentração de riqueza e poder nas mãos de uma pequena parcela da população, em detrimento da maioria, escancara como as mulheres são prejudicadas, apesar de pesquisas e dados apontarem que elas têm habilidades de gestão e resultados de performance similares aos homens.

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A transparência nas informações e a reflexão sobre as práticas empresariais supostamente neutras, mas que são na verdade reflexos de preconceitos arraigados, são instrumentos fundamentais para o avanço de políticas públicas e privadas intencionais. Relatórios como esse proporcionam cobrança social e permitem que a sociedade compreenda melhor a lógica (ou a falta dela – o que também diz muito!) por trás das políticas de remuneração.

O esforço pela igualdade salarial, no entanto, não se encerra com a publicação de relatórios. É crucial fiscalizar como os documentos são interpretados e produzidos. Nesse sentido, todo o aparato estatal, incluindo fiscais e juízes, precisam ser também adequadamente capacitados.

Parcerias multistakeholder e trocas de experiência propositivas precisam ser incentivadas e desenvolvidas a partir do diálogo e de conversas difíceis. Não se trata apenas de punir as empresas em descumprimento. É preciso capacitar as partes envolvidas para que as iniciativas realmente gerem mudanças significativas.

Respeitar direitos humanos, incluindo a igualdade salarial e a não discriminação, pode e deve ser uma vantagem competitiva!

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Escolhas de investimento e justiça de gênero

Estereótipos de gênero que questionam a capacidade de liderança e gestão das mulheres são muitas vezes internalizados por investidores e financiadores, o que leva a uma subavaliação do potencial de sucesso dos empreendimentos liderados por elas. Os reflexos não são apenas a falta de investimento em startups e empresas com liderança feminina, mas também a alocação de recursos em setores econômicos tradicionalmente dominados por homens, como tecnologia e finanças, enquanto setores onde as mulheres têm maior representação, como educação e cuidados de saúde, recebem menos atenção e financiamento.

Assim, a questão das escolhas de investimento não é apenas econômica, mas também de justiça de gênero. Para promover a igualdade e maximizar o potencial econômico, é essencial superar os preconceitos de gênero e garantir que mulheres tenham acesso a financiamento e investimentos em todas as áreas da economia. Isso não traria somente benefícios individuais, mas também contribuiria para um crescimento econômico mais inclusivo e sustentável.

Nós, do Pacto Global da ONU – Rede Brasil, colocamos a serviço de nossas mais de 2 mil organizações diversas trilhas de conhecimento, capacitação, programas e projetos que permitem avançar em cada umas dessas temáticas a partir de trocas de valor e em aliança com uma potente rede, que inclui o poder público, as diversas agências, fundos e programas do sistema ONU, além de sociedade civil, academia e as próprias empresas.

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O mundo passa por um daqueles momentos de definição em que precisamos fazer, enquanto sociedade, perguntas difíceis para encontrar soluções inovadoras que deem conta dos desafios para repactuar o modelo que precisamos construir para não sermos a primeira espécie a se auto extinguir.

Na própria CSW, os maiores desafios mencionados pelas diversas partes para o alcance da Agenda 2030 foram: o retrocesso contra o progresso da agenda feminista e dos movimentos negros e sociais em geral (backlash); o aumento dos conflitos armados ao redor do mundo; e a crise climática, que coloca em xeque o cuidado com a vida.

Enfrentamos, simultaneamente, crises políticas, econômicas, ambientais e humanitárias. A própria democracia está em risco em boa parte do planeta e os direitos humanos estão cada vez mais ameaçados pelo crescimento (ou reaquecimento!) de discursos conservadores e moralistas. Nesse contexto, os retrocessos na igualdade de gênero e dos direitos de meninas e mulheres não são uma mera coincidência.

Além dessas diversas e sobrepostas crises impactarem de formas bastante diferentes – e muito mais graves – a realidade de mulheres e meninas, especialmente daquelas em situação de múltipla vulnerabilidade, questões de gênero são as mais acionadas e instrumentalizadas quando se trata de tecer estruturas democráticas mais sólidas e resilientes.

Enfraquecer os debates sobre igualdade, equidade, inclusão e reparação é, em primeira e última instâncias, enfraquecer a própria substância da Democracia.

“Democracia é mais do que inclusão e assimilação, mas nos preocuparmos com quais serão os termos dessa inclusão.” (Angela Davis)

Se desejamos uma democracia ampla, que seja modelo de sociedade e que de fato propicie equidade e justiça a todos, todas e todes, precisamos questionar não apenas quem está à frente das decisões, mas também as estruturas e as formas pelas quais o poder é exercido.

Sobre o Pacto Global da ONU

Como uma iniciativa especial do Secretário-Geral da ONU, o Pacto Global das Nações Unidas é uma convocação para que as empresas de todo o mundo alinhem suas operações e estratégias a dez princípios universais nas áreas de direitos humanos, trabalho, meio ambiente e anticorrupção. Lançado em 2000, o Pacto Global orienta e apoia a comunidade empresarial global no avanço das metas e valores da ONU por meio de práticas corporativas responsáveis. Com mais de 21 mil participantes distribuídos em 65 redes locais, reúne 18 mil empresas e 3.800 organizações não-empresariais baseadas em 101 países, sendo a maior iniciativa de sustentabilidade corporativa do mundo, com abrangência e engajamento em 162 países. Para mais informações, siga @globalcompact nas mídias sociais e visite nosso website .

Rede Brasil

O Pacto Global da ONU no Brasil foi criado em 2003 e hoje é a segunda maior rede local do mundo, com mais de 1.900 participantes. Os mais de 50 projetos conduzidos no país abrangem, principalmente, os temas: Água e Saneamento, Alimentos e Agricultura, Energia e Clima, Direitos Humanos e Trabalho, Anticorrupção, Engajamento e Comunicação. Para mais informações, siga @pactoglobalbr nas mídias sociais e visite nosso website.

Conheça mais sobre a Estratégia Ambição 2030, e os Movimentos Raça é Prioridade e Elas Lideram.

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Tayná Leite

Tayná Leite é Gerente Executiva de Direitos Humanos e Trabalho do Pacto Global da ONU no Brasil, com experiência em Diversidade e Inclusão, Compliance e Direito. É Doutoranda em Ciência Política na UNB, Mestra em Sociologia pela UFPR e autora do livro Gestar, Parir, Amar: não é só começar.

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