Caro Hélio Schwartsman

Este texto é uma resposta a Hélio Schwartsman, que em sua coluna intitulada “A batalha dos gêneros”, na Folha de São Paulo, em 10 de janeiro, fez uma crítica aos que o questionaram por ter parabenizado aos argentinos, e não às argentinas, pela legalização do aborto no país

 

Por Beatriz Della Costa, Renata Correa e Giulliana Bianconi*

A pressão dos movimentos feministas foi fundamental para a aprovação da lei que legaliza o aborto na Argentina | Foto: Divulgação Meia década de jornalismo sobre gênero e raça APOIE A GN PARA IRMOS MAIS LONGE QUERO IR JUNTO!

Em uma coluna recente na Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman queixou-se por ter sido criticado por ter parabenizado os argentinos – e não as argentinas – pela legalização do aborto no país. Segundo o colunista, “policiar a língua funciona melhor para aplacar a mente do militante do que para resolver injustiças e quebrar preconceitos”. E aqui queremos discordar.

A vitória alcançada pelo movimento feminista argentino está calcada em décadas de articulação política feita majoritariamente por mulheres. Muitos homens apoiaram a lei que agora garante a todas o aborto legal, seguro e gratuito – é certo. Mas o argumento asséptico de que a flexão plural da luta coletiva resulta em argentinos – no masculino  – é sobretudo  mais do mesmo e reforça o “apagamento de protagonismo” que reduz a intensidade do que somos como movimento, nas narrativas históricas.

Não é a primeira vez que esse apagamento é justificado como “não-intencional”. Afinal, “assim nos ensina a gramática”. O que o colunista talvez não tenha conseguido observar, apesar de sua ampla formação intelectual, é que a gramática formal já não é suficiente para escrever o mundo que estamos construindo em substituição a este em que as normas – não apenas na língua – privilegiam o masculino.  Como bem disse Grada Kilomba, “no fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana”.

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Conhecer o movimento feminista na Argentina é aprender que o sistema linguístico é a expressão primordial de uma cultura.  Em 2015, por exemplo, o movimento #NiUnaMenos conseguiu colocar o feminicício na pauta de todos os jornais, acabando com o hábito cruel de chamar o assassinato de mulheres de “crime passional”. A partir desta mudança de linguagem houve uma mudança cultural, que é impressa em decisões judiciais, com femicidas sendo reconhecidos e julgados como tais. Isso é enfrentamento, de fato. Muda tudo.

Concordamos que em um mundo de tantas injustiças devemos escolher com critério nossas batalhas e agir com estratégia para avançar mais rápido. Mas linguagem é comportamento, e sua dimensão política é capaz de criar ou perpetuar relações de poder. A mudança cultural exige batalhas hercúleas, mas também passa por pequenas transgressões (inclusive contra o que parece inofensivo). A vitória das argentinas só faz confirmar essa convicção. Parabéns às argentinas.

*Beatriz Della Costa é cofundadora do Instituto Update, Renata Correa é escritora e militante feminista e Giulliana Bianconi é diretora-executiva da Gênero e Número.

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