Anielle, Luciana, Silvio, Margareth e as vovós no poder

  • Primeira ministra negra na Ciência e Tecnologia

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Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Conceição Evaristo — Olhos D’Água

 

Por Maria Martha Bruno

Em quatro anos, Anielle Franco teve a irmã assassinada, liderou uma cruzada por memória e justiça, criou com a sua família um instituto para valorizar a potência de mulheres negras e aumentar a representatividade delas na política e foi nomeada ministra da Igualdade Racial. Com o anúncio de Lula hoje, são três mulheres negras e um homem negro entre os ministros de Estado: o advogado e professor Silvio Almeida – uma referência no ativismo negro, assume a pasta dos Direitos Humanos, a cantora e representante da classe artística Margareth Menezes, com toda a sua história impregnada de Bahia, vai para a Cultura, e a engenheira e até então vice-governadora de Pernambuco Luciana Santos assume o ministério da Ciência e Tecnologia, sendo a primeira mulher negra no cargo. 

A chegada de Anielle ao Ministério não é reparação porque o mesmo Estado ainda deve respostas sobre quem mandou matar Marielle e ainda assassina seus conterrâneos na Maré e em outras favelas, além de diuturnamente maltratar a população negra do país. Mas é um começo carregado de reconhecimento, simbolismo e — por que não? — esperança. 

Anielle Franco no primeiro escalão do Poder Executivo leva também a ancestralidade das mulheres negras que enriquecem nossa política, espiritualidade e cultura. Estarão no  ministério Lélia Gonzalez, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, todas as vovós que cuidam e orientam milhões de brasileiros. Tudo o que Sueli Carneiro construiu nos 34 anos de Geledés e em parte dos seus 70 anos de vida também. Lembremos ainda que, há 20 anos, no primeiro governo Lula, Benedita da Silva levava sua trajetória de empregada doméstica e favelada do Morro da Babilônia para a mesma pasta. E nunca esqueçamos: mulheres negras são a maior parte da população brasileira (28%, segundo o IBGE). 

Primeira ministra negra na Ciência e Tecnologia

Em Digital Black Feminism, Catherine Steele questiona os conceitos de colonizadores brancos sobre conhecimento e tecnologias, a fim de reivindicar o brilho de mulheres negras na mesma humanidade que gosta de exaltar o Vale do Silício e o Iluminismo. O apagamento documental e histórico das pretas não elimina, só reforça suas existências, diz ela: 

“A escassez de documentação é sintoma de uma doença maior: a relutância da sociedade em ver mulheres negras em sua humanidade plena. Ainda assim, apesar das circunstâncias, as mulheres negras conseguiram deixar para si um registro de sobrevivência”.

Luciana Santos, mulher preta e nordestina, alcança agora o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta tão maltratada por homens brancos no Governo Bolsonaro, e passa a ser a primeira mulher nomeada por um presidente para o cargo. Até 2016, apenas homens haviam assumido a cadeira, quando a a advogada Emilia Maria Curi assumiu como interina e passou apenas um mês ministra.

Com Anielle, Silvio, Luciana e Margareth, o Brasil, país que coletiva e institucionalmente processa de maneira alienada seus lutos históricos, dá mais um passo para a reparação.

Sabemos o desenrolar de governos democráticos no país. Haverá crises políticas, não será surpresa se surgirem denúncias de compra de votos no Congresso (lembremos, prática não iniciada com o mensalão de Lula, mas com as privatizações de FHC), cobranças à (extrema) direita e à esquerda, questionamentos sobre a insuficiência de políticas públicas, denúncias de corrupção. 

Mas se há quatro anos nosso especial de fim de ano era sobre a simbologia da morte de Marielle Franco em um país que acabara de eleger Jair Bolsonaro, desta vez encerramos o ano com uma perspectiva alvissareira para a luta que ainda temos pela frente.

 

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Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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