Foto: Marcelo Santanna/Imprensa-MG

Alas para travestis encarceradas segregam para proteger, mas não garantem direitos

Gênero e Número ouviu profissionais atuantes em Minas Gerais e Rio Grande do Sul, dois dos Estados onde há mais celas ou alas destinadas a travestis e mulheres transexuais, e constatou violações a direitos básicos; pesquisa com internas em MG e SP aponta que maioria prefere a segregação ao convívio com outros presos

Por Carolina de Assis*

Carolina de Assis

  • Identidades femininas em presídios masculinos

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  • MG: superlotação e homens heterossexuais nas alas

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  • Desrespeito ao nome social

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  • Segregar para proteger?

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Desde 2009, as alas destinadas a travestis e mulheres transexuais privadas de liberdade existem oficialmente no Brasil como política pública de atenção específica a esta população prisional, promovida pelos governos dos Estados. Estes espaços foram criados como uma tentativa de protegê-las dos abusos de presos heterossexuais e cisgênero, mas uma pesquisa recente aponta que esta política ainda não conseguiu guardá-las da transfobia de muitos dos agentes do Estado que as custodiam.

Foi o que relataram as 23 internas ouvidas pela pesquisadora Natália Macedo Sanzovo em 2016, como parte de sua dissertação de mestrado “O lugar das trans* na prisão”, recém-defendida na Faculdade de Direito da USP. Presas alocadas em unidades carcerárias em Minas Gerais e São Paulo, muitas disseram ser submetidas cotidianamente a humilhações e agressões físicas por carcereiros, que se recusam inclusive a respeitar o nome social das internas, um dos direitos básicos das travestis e mulheres trans.

“A maioria xinga a gente de bicha, traveco, demônio.”

“Debocham o tempo inteiro da cara da gente, chama a gente de puta, safada, chama a gente de drogados, chama a gente de presos nojentos, ficam rindo.”

“É preso, monstro, é lixo; tô sendo sincero e realista, é isso. Nossa, eu já apanhei muitas vezes de um agente aqui.”

Parte importante desses direitos foi validada na resolução federal de abril de 2014, como o tratamento pelo nome social e o uso de roupas femininas e escolha do comprimento dos cabelos. A medida também determinou que “aos travestis [sic] e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos”.

Identidades femininas em presídios masculinos

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) registrou em junho de 2014 a existência de 10 estabelecimentos prisionais com ala e 54 com celas exclusivas para pessoas LGBT privadas de liberdade, espalhados por 17 Estados e no Distrito Federal. Estes somam 5% do total de estabelecimentos recenseados pelo levantamento e têm capacidade para 639 internas e internos.

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As prisões têm uma concepção de que o gênero é o sexo, a genitália, e este é o argumento usado para prender travestis e mulheres trans em presídios de homens

— Guilherme Gomes Ferreira, doutorando em serviço social (PUC-RS/ISCTE-IUL)

O Estado de São Paulo, que concentra um terço da população prisional do país, havia em 2013 uma média de uma presa travesti ou transexual para cada 500 presos e presas, segundo cálculo do antropólogo Márcio Zamboni, do Numas (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença), da USP. Aplicada ao total da população prisional do país registrada pelo Infopen, esta taxa aponta para 1.215 travestis e mulheres transexuais encarceradas no Brasil.

Seguindo a leitura do Estado, travestis e mulheres trans que não tenham feito a cirurgia de transgenitalização são encarceradas em unidades masculinas. “As prisões têm uma concepção de que o gênero é o sexo, a genitália, e este é o argumento usado para prender travestis e mulheres trans em presídios de homens”, diz Guilherme Gomes Ferreira, doutorando em serviço social (PUC-RS/ISCTE-IUL) cuja pesquisa trata das experiências de pessoas trans e travestis com processos de criminalização e aprisionamento. “Há também a ideia de que travestis e mulheres trans poderiam estuprar mulheres cisgênero, colocá-las em situação de violência, por isso não podem estar em presídios com outras mulheres e têm que ficar em presídios de homens.”

MG: superlotação e homens heterossexuais nas alas

Minas Gerais é uma das três unidades da Federação com mais alas e celas exclusivas e que oferece mais vagas para este segmento da população prisional, segundo o Infopen. O Estado também reivindica o pioneirismo desta experiência no Brasil, com a primeira ala fundada oficialmente em 2009 no Presídio de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, por iniciativa da Coordenadoria Especial de Políticas de Diversidade Sexual (Cods).

Em 2013, Minas criou um programa de reabilitação, reintegração social e profissionalização voltado para travestis, mulheres transexuais e homens gays privados de liberdade, concentrado em duas alas: uma na Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, também em São Joaquim de Bicas, e outra no Presídio de Vespasiano, no município de mesmo nome. As regras do programa estipulam que travestis, mulheres transexuais e homens gays encarcerados no Estado podem solicitar a transferência para estas alas e a participação no programa, que prevê oportunidades de estudo, trabalho e capacitação profissional dentro das unidades, mediante a assinatura de um “termo de autodeclaração de homossexualidade”.

As alas foram criadas para abrigar 34 presas e presos cada uma, mas Vespasiano abriga hoje 72 pessoas e Albergaria, 86. Ainda segundo apuração da Gênero e Número, a superlotação se agrava pelo fato de que muitos dos presos que se encontram atualmente nos dois espaços são homens heterossexuais — eles se disseram gays e pediram a transferência para fugir de ameaças e rixas com outros presos em suas unidades de origem.

A pesquisadora Sanzovo ouviu das travestis e mulheres trans nas duas alas relatos de extorsão, violência física e até estupro perpetrado contra elas pelos internos heterossexuais. Luana Rodrigues, assistente técnica do Cods, disse à Gênero e Número que uma comissão estadual formada por representantes das polícias civil e militar de Minas e das secretarias de Defesa Social e de Direitos Humanos está debatendo o problema, mas ainda não há um plano de ação para enfrentá-lo.

Desrespeito ao nome social

Uma ponto elementar na vivência das travestis e mulheres trans, dentro e fora das prisões, é o respeito ao nome social delas. O nome que adotaram reflete a identidade de gênero feminina, em oposição ao nome de registro, masculino. O desrespeito de agentes penitenciários ao nome social foi relatado por todas as internas entrevistadas por Sanzovo, tanto nas unidades mineiras como no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP-II), de São Paulo, que em 2016 concentrava em duas celas as travestis e mulheres trans custodiadas no local, junto com presos homens.

“Se é uma ala específica, elas deveriam pelo menos ser tratadas no feminino, e não são”, diz Anyky Lima, representante em Minas Gerais da Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Ela participou de várias visitas de monitoramento às alas de Vespasiano e Albergaria promovidas pelo Cods e disse à Gênero e Número que o desrespeito ao nome social é a principal queixa das internas. A ativista também lembrou que Minas Gerais tem uma lei que garante o direito de uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans no âmbito da administração pública estadual. “Não tem coisa pior para uma travesti do que ser tratada como homem”, afirma.

Questionada pela Gênero e Número, a Secretaria de Administração Prisional de Minas disse que “todos os funcionários da Seap que trabalham em unidades prisionais que possuam alas especiais são orientados e estão cientes do Decreto Estadual n° 47.1148” e que o órgão “tem intensificado as fiscalizações e advertido servidores que não cumprem a determinação”.

Para Sanzovo, a recusa de alguns agentes penitenciários em tratar as internas pelo nome social é um aniquilamento simbólico, fruto da transfobia. “A melhor forma de negar a existência delas é não chamá-las pelo nome social. Porque a partir do momento em que você as chama [pelo nome social], você reconhece o direito de elas existirem, e eles não querem que elas existam na sua totalidade.”

O pesquisador Guilherme Gomes Ferreira diz que a situação é a mesma na galeria para travestis, mulheres trans, homens gays e seus companheiros na Cadeia Pública de Porto Alegre. Assim como Minas, o Rio Grande do Sul está entre os três Estados brasileiros com mais vagas e mais unidades com alas ou celas para pessoas LGBT privadas de liberdade, segundo o Infopen.

“Estive na Cadeia semana passada e elas me relataram que os policiais estão há mais ou menos dois anos sem deixar entrar roupas femininas, dizendo para as famílias que levavam que aquilo é uma cadeia de homens e que roupa de mulher não entra ali. Então elas têm pedido para as famílias trazerem a roupa no corpo, vestidas, para trocar com elas durante a visita”, conta Ferreira.

Segregar para proteger?

As alas e celas destinadas exclusivamente a travestis e mulheres trans são objeto de controvérsia: a segregação e a frágil proteção que a medida oferece, como indicam os relatos das internas em Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, são questionadas por ativistas, pesquisadores e, muitas vezes, pelas próprias internas. Muitas também prefeririam permanecer no convívio com presos homens, com quem podem se relacionar afetiva e sexualmente.

É o que diz Anyky Lima sobre as custodiadas nas alas de Vespasiano e Albergaria, que dividem o espaço com homens gays e, “clandestinamente”, homens heterossexuais. “Elas pedem para ir para as alas porque lá elas convivem umas com as outras; brigando ou não, elas estão entre elas. E sabem que lá também tem homens para namorar, e que correm menos risco” do que no convívio comum em unidades masculinas, afirma.

Na pesquisa realizada por Sanzovo junto a 23 internas em Minas e em São Paulo, 11 disseram que gostariam de ficar em um presídio somente para travestis e mulheres trans e oito disseram preferir uma ala com homens gays e bissexuais. Duas disseram que prefeririam cumprir suas penas no convívio normal de um presídio masculino, uma gostaria de ficar em um presídio feminino com as mulheres cisgênero e uma sugeriu a criação de uma ala para mulheres trans em um presídio feminino.

A pesquisadora acredita que a maioria das internas abriria mão da convivência com o parceiro devido à experiência em Vespasiano e Albergaria. “A ideia delas é que, ao ficar em uma ala exclusiva para elas, não haveria risco de o espaço ser invadido por homens héteros que acabam reproduzindo a violência do convívio normal dentro da ala LGBT.”

Em Porto Alegre, as travestis e mulheres trans encarceradas na Cadeia Pública dizem reiteradamente que preferem que aquela galeria continue sendo só delas e de seus companheiros, conta Ferreira. Para ele, a questão das alas exclusivas “não pode ser tratada senão do ponto de vista da contradição, pois ao mesmo tempo em que ela segrega, ela também protege. Não é uma coisa ou outra.”

“As prisões não existem para garantir os direitos das pessoas, isso é uma ilusão”, acredita o pesquisador. “Mesmo as políticas que se dizem cidadãs são controladas por essa lógica de funcionar como mais um dispositivo de controle e de violação. A galeria, em si, comporta tudo isso, violação e proteção, mas as travestis, nas narrativas delas, querem muito que se mantenha”, diz Ferreira.

Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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