Pesquisa revela jovens pessimistas e desconfiados da polícia no Brasil

Estudo do Unicef apresenta anseios e perspectivas de jovens brasileiros que, segundo especialistas, escancaram desafios como violência institucional e desvalorização de crianças na política;  entre 21 países, Brasil só é mais otimista em relação a um mundo melhor do que Mali, na África 

  • Sociedade “adultocentrada”

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Como os jovens percebem os direitos humanos no dia a dia? Para eles, o acesso aos direitos aumentou ou diminuiu? Estas foram algumas das questões que o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o Instituto Gallup, buscou responder no relatório The Changing Childhood Project, divulgado no último mês de novembro. 

A pesquisa foi realizada em 21 países entre jovens de 15 a 24 anos e adultos com mais de 40 anos. Todos foram submetidos a 84 perguntas sobre política, meio ambiente e questões de gênero, entre outros temas que poderiam indicar uma maior aproximação a uma das cartas mais importantes da História – publicada em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos buscou estabelecer, em um mundo pós 2ª Guerra Mundial, um entendimento sobre a dignidade humana que ultrapassasse fronteiras geográficas, ao mesmo tempo em que situou a importância do Estado para a preservação dos direitos individuais.

Segundo a pesquisa, percebe-se uma sensação de otimismo entre os jovens: 57% afirmam que o mundo está se tornando um lugar melhor, enquanto apenas 39% dos adultos afirmaram o mesmo. No Brasil, no entanto, a sensação de otimismo só é maior do que em Mali, na África Ocidental. Por aqui, apenas 31% dos adolescentes e jovens, e 19% dos adultos, acreditam que o mundo está melhorando.

 

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Os 500 jovens brasileiros, de 15 a 24 anos, que responderam às perguntas demonstraram uma maior conscientização sobre a importância do tratamento igualitário às minorias. Enquanto foi quase um consenso de que é importante que mulheres recebam tratamento igualitário no acesso a direitos (98%), 89% dos jovens também reconheceram ser de extrema importância o tratamento igualitário à população LGBT+, enquanto 94,4% afirmaram o mesmo em relação a minorias étnicas, e 83,3% declararam que é muito importante a equidade para minorias religiosas. 

Algumas questões respondidas pelos brasileiros também ilustram desafios enfrentados pela geração no país. Um exemplo é a violência do Estado contra os jovens, e como ela foi traduzida como insegurança pela pesquisa. Em relação ao grau de confiança na polícia, 62,6%, entre homens e mulheres de 15 a 24 anos afirmaram se sentir apenas “pouco seguros” com a instituição.

Dos 500 entrevistados, 18% não confiam “nem um pouco” na polícia, enquanto a mesma porcentagem também é encontrada entre aqueles que estão na dimensão oposta: os que confiam totalmente.

Você confia muito, pouco

ou não confia na polícia?

Segundo pesquisa do Unicef, menos de 20% das jovens brasileiras têm total confiança nas autoridades policiais

muito

Pouco

nem um pouco

20 - 24 anos

15%

67%

18%

mulheres

60%

20%

20%

homens

15 - 19 anos

13%

67%

19%

mulheres

28%

16%

55%

homens

fonte Unicef

Você confia muito, pouco ou não confia

na polícia?

Segundo pesquisa do Unicef, menos de 20% das jovens brasileiras têm total confiança nas autoridades policiais

muito

Pouco

nem um pouco

20 - 24 anos

mulheres

15%

67%

18%

homens

60%

20%

20%

15 - 19 anos

mulheres

13%

67%

19%

homens

28%

16%

55%

fonte Unicef

Entre os adolescentes, a insegurança foi maior: apenas 9% de jovens entre 15 e 19 anos declararam “confiar muito” na polícia. Dados do Anuário da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que, em 2020, 6.416 pessoas foram vítimas fatais de intervenções de policiais civis e militares da ativa, média de 17,6 mortes por dia. Se a maioria das vítimas é composta por homens, o percentual de vítimas mulheres aumentou em um ano, de 0,8% para 1,6% dos casos, sendo 76% jovens de até 29 anos. 

Hoje observamos novas políticas criadas pelos jovens, que estão entrando em um conflito cada vez maior com a velha política. É ela que acaba sustentando uma negação de direitos humanos a partir da tentativa de podar essa juventude - Nathália da Silva, ativista e assessora política

Coordenadora do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, Thais Gomes diz que os dados da pesquisa do Unicef mostram como jovens periféricos estão, cada vez mais cedo, sendo obrigados a se lerem como alvo da violência do Estado.

“Essa insegurança só mostra que a juventude sabe que é o principal alvo da letalidade policial, os jovens crescem sabendo disso. As estatísticas já mostram que o corpo que está sendo abatido pelo Estado é jovem, negro e periférico, e isso só diminui a sensação de segurança, mas também mostra o despertar que jovens começam a ter quando passam a cobrar isso do Estado e apontar as questões de gênero e raciais envolvidas”, destaca. Para ela, mais do que a falta de segurança, os dados do Unicef mostram um engajamento maior para a leitura de problemas que afetam o acesso aos direitos humanos para todos.

Quão importante é as crianças serem ouvidas pelos líderes políticos?

Maioria dos jovens acredita que as crianças devem participar da vida política do país

muito

Pouco

nem um pouco

20 - 24 anos

69%

26%

4%

mulheres

55%

40%

4%

homens

15 - 19 anos

64%

29%

6%

mulheres

51%

43%

6%

homens

fonte Unicef

Quão importante é as crianças serem ouvidas pelos líderes políticos?

Maioria dos jovens acredita que as crianças devem participar da vida política do país

muito

Pouco

nem um pouco

20 - 24 anos

mulheres

69%

26%

4%

homens

55%

40%

4%

15 - 19 anos

mulheres

64%

29%

6%

homens

51%

43%

6%

fonte Unicef

Sociedade “adultocentrada”

Os jovens brasileiros entrevistados pela pesquisa destacam ainda que, para eles, acesso aos direitos humanos também inclui participação política: diante da pergunta “O quanto é importante que crianças sejam ouvidas por lideranças políticas?”, 61% afirmaram ser muito importante. 

Mas, quando se trata de voto, os números estão na contramão dos anseios apresentados pelos jovens na pesquisa: segundo o Tribunal Superior Eleitoral, eleitores jovens, de 16 a 24 anos, ainda compõem apenas 13,28% do eleitorado brasileiro. Menos de 2% dos eleitores jovens até 24 anos têm interesse em  se filiar a um partido.

A contradição pode ser explicada por um desencorajamento a olhar a juventude como um segmento político da sociedade. Jornalista, ativista e assessora política, Nathália da Silva destaca o crescimento de iniciativas orgânicas de política entre a juventude e sua aproximação com os espaços institucionais de poder, mas aponta um conflito permanente que, para ela, além de geracional, também tem fortes nuances de raça e classe.

 

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“Se formos olhar para a juventude periférica e negra do Brasil, podemos destacar, desde sempre, um distanciamento da ideia de que corpos negros podem ser inteligentes e fazer política. Boçal, por exemplo, é uma palavra que surgiu no contexto da escravidão e foi associada ao corpo negro, jovem, que não pensa. Hoje observamos novas políticas criadas pelos jovens, que estão entrando em um conflito cada vez maior com a velha política. É ela que acaba sustentando uma negação de direitos humanos a partir da tentativa de podar essa juventude”, analisa. 

Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Verônica Belfi Roncetti Paulino destaca que a participação política da juventude ainda está longe de ser uma realidade no cotidiano escolar – o que pode ajudar que jovens não se vejam como cidadãos políticos. Ela cita como exemplo a dificuldade, no dia a dia, para a participação de crianças no desenvolvimento dos projetos pedagógicos da escola – seu objeto de estudo. 

“Vivemos em uma sociedade que ainda é ‘adultocentrada’, na qual os direitos das crianças são percebidos a partir do que os adultos querem determinar a elas e, com isso, observamos que ainda há uma grande dificuldade de enxergá-las como sujeitos políticos. Na Educação, a participação política das crianças deveria ter mais espaço, inclusive para a discussão do que deve ser importante para elas durante o seu próprio percurso escolar”, afirma.

A antropóloga Claudia Puentes, no entanto, é mais otimista sobre o futuro. Apesar de reconhecer as dificuldades do presente, a pesquisadora se ampara nas experiências pessoais em terreiros e em quilombos para encontrar uma relação intergeracional mais dinâmica, que implica em uma participação política jovem que abre caminho para pensar em mais direitos para todos:

“Nunca são relacionamentos fáceis, mas eles existem. Podemos até dizer que, num contexto em que os direitos humanos ainda encontram muitas dificuldades de serem inseridos nas escolas e no cotidiano da escolar formal, o que atrapalha na formação política dos jovens, vivemos em uma sociedade com espaços em que esse aprendizado existe. Isso leva os jovens a se enxergarem políticos diante dos mais velhos, o que acaba levando a transformações inesperadas”.

Acesse a base da reportagem aqui.

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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