Estudantes brasilienses concluem simulado do Enem Colégio Setor Oeste, Asa Sul, Brasília, DF, Brasil 7/7/2016 Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília.

Manutenção do Enem em meio a alta de casos de covid-19 prejudica negros e periféricos

Estudantes negros, de baixa renda e do norte do país são os menos assistidos pelo sistema educacional durante a pandemia, segundo Boletim do Afro Cebrap

Por Vitória Régia da Silva*

  • Desigualdades educacionais

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  • #AdiaEnem e #EnemSeguro

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A vestibulanda paulistana Rozana Barroso, 21, cresceu ouvindo seu pai cantarolar “a filha do pedreiro vai virar doutora”. Como uma jovem negra de uma família de mulheres negras que são empregadas domésticas, Barroso tenta romper esse ciclo familiar com o acesso à universidade. Seu sonho é fazer biomedicina. A realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal porta de entrada para jovens negros no ensino superior, neste contexto de pandemia, pode escancarar ainda mais as desigualdade sociais na educação, segundo estudantes, professores e especialistas ouvidos pela Gênero e Número.

“O Enem significa os sonhos de uma juventude que quer romper com ciclos familiares e mudar a vida da sua família. A realização da prova neste momento é uma tentativa de retrocesso contra o avanço de pessoas negras periféricas no ensino superior. É fechar as portas da educação superior para a maioria do povo brasileiro”, critica a estudante. “Este Enem pode significar uma falta de perspectiva de futuro para a juventude negra e favelada brasileira”.

Barroso representa a maioria dos estudantes inscritos no Enem 2020, que será realizado nos dias 17 e 24 de janeiro deste ano, na versão impressa. Já a versão digital será aplicada nos dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro. Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), foram mais de 5,79 milhões de inscrições confirmadas, sendo que, mais uma vez,  60% dos estudantes que vão fazer a prova são mulheres e também 60% são negros (pretos e pardos). Além disso, houve um crescimento de 450% no número de pessoas trans inscritas que solicitaram o uso do nome social em relação a 2019: serão 2.184 em 2020.

Mulheres e negros são a maioria dos inscritos no Enem 2020

Em relação a 2019, houve um crescimento de 450% no número de inscritos com nome social

5.69 milhões

enem impresso

96 mil

enem digital

por gênero

56 mil

40 mil

3.41

milhões

2.28

milhões

feminino

masculino

por raça

56 mil

35 mil

3.44

milhões

1.97

milhões

3 mil

2 mil

163

115

não

declarante

outros

negros

brancos

* valores arredondados

Candidatos trans que solicitaram o uso do nome social

2020

2.184

2019

394

fonte inep

Mulheres e negros são a maioria dos inscritos no Enem 2020

Em relação a 2019, houve um crescimento de 450% no número de inscritos com nome social

5.69 milhões

enem impresso

96 mil

enem digital

por gênero

56 mil

3.41

milhões

feminino

40 mil

2.28

milhões

masculino

por raça

56 mil

3.44

milhões

negros

35 mil

1.97

milhões

brancos

3 mil

163

outros

2 mil

115

não

declarante

* valores arredondados

Candidatos trans que solicitaram o uso do nome social

2020

2.184

2019

394

fonte inep

Além de ser vestibulanda, Rozana Barroso é presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), entidade que representa mais de 40 milhões de estudantes do ensino médio. Desde maio de 2020, quando foi aprovado o primeiro adiamento do Enem (o segundo adiamento foi em novembro), a entidade tenta criar um diálogo com o Ministério da Educação (MEC), que não tem respondido à demanda dos estudantes. 

A Ubes e a União Nacional dos Estudantes (UNE), em nota conjunta, pedem respostas ao Ministério de Educação sobre os protocolos de segurança para a realização do exame e a falta de diálogo com os estudantes. Até o momento, as organizações disseram que não há respostas sobre as medidas de segurança sanitária que deveriam ser tomadas, nem sequer como os recursos destinados a esse fim teriam sido utilizados. Procurado, o Inep não retornou o nosso contato até o fechamento da reportagem.

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Desigualdades educacionais

A pandemia do novo coronavírus impactou o sistema educacional brasileiro, que já apresentava desigualdades sociais dentro do sistema escolar. A dificuldade de acesso aos recursos como internet, computador e celular, que são necessários para a continuidade dos estudos no modo remoto, só aprofundou esse desequilíbrio. Segundo o boletim “As desigualdades educacionais e a covid-19”, do Afro Cebrap, o Brasil não comporta um ensino básico à distância público, universalizado e de qualidade.

“A pandemia, no ensino à distância, tem a internet como o principal meio de acesso à educação, só que ao mesmo tempo, temos uma situação de acesso desigual à internet. Muitas regiões do país não têm acesso à banda larga, com conexão de qualidade, apenas via celular. Isso faz com que tenhamos uma diferença muito grande entre pessoas brancas de alta situação socioeconômica e pessoas negras que não têm essa mesma situação”, destaca Anna Carolina Venturini, pesquisadora do Afro Cebrap e doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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Segundo dados de educação da Pnad Covid, analisados no estudo, desigualdades de renda, étnico-raciais e regionais fizeram diferença no acesso dos alunos ao ensino remoto em 2020. Os estudantes da região Norte foram os menos assistidos pelo sistema educacional, recebendo menos atividades, como aulas online, deveres e estudo dirigido para fazer em casa (54%), em comparação com Sul (90,8%), Sudeste, (86,5%), Centro-Oeste (82,3%) e Nordeste (71,%).  

Os estudantes do ensino médio foram os que menos receberam atividades em relação a outras etapas de ensino em todas as regiões do país. Quanto à desigualdade racial, os estudante negros foram os que menos receberam atividades educacionais durante a pandemia no ensino fundamental. Enquanto os brancos foram 89% dos que receberam, a proporção entre negros foi de 77%.

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE) de 2019,  a maioria dos estudantes das etapas de alfabetização (68%), ensino fundamental (67%) e ensino médio (59%) não possui computador em casa ou domicílio de moradia. No ensino médio, 68% dos pardos e 66% dos pretos não têm acesso a computador com internet, enquanto entre os brancos o percentual é de 44%. 

“Quando a pandemia de covid-19 chegou no Brasil, ela já encontrou uma série de desigualdades. Temos muitas disparidades no nosso sistema educacional. O foco do nosso boletim é pensar no acesso aos recursos de ensino à distância. A pandemia aprofundou ainda mais essas desigualdades porque temos um país que não estava preparado para transferir o ensino do presencial para o virtual em um prazo curto de tempo”, avalia Venturini.

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E não foi só no ensino médio que os efeitos da pandemia foram sentidos. Nos cursos preparatórios para o vestibular, uma etapa de ensino que não é pública, mas que existe para fazer essa ponte para o ensino superior, as desigualdades sociais também foram exacerbadas.

“Como professor, eu atendo públicos muito distintos, porque também dou aula em cursinhos comunitários e particulares do Distrito Federal. O  primeiro baque foi a adaptação para o online: os alunos tiveram dificuldade em autogestão e no acesso à  internet. E  também porque quando decidimos tornar o Vestibular Cidadão online, sabíamos que significaria deixar de fora as pessoas que não teriam condições de participar das aulas devido a problemas de exclusão digital ou financeira que estão muito além da gente”, lamenta Vinicius Machado, professor de geografia e presidente do projeto Vestibular Cidadão.

O Vestibular Cidadão é uma organização sem fins lucrativos que oferece aulas preparatórias gratuitas para vestibulares e Enem a estudantes de escolas públicas desde 2005. O projeto atende 400 alunos por ano e, devido à pandemia, teve que aderir também ao ensino online.

#AdiaEnem e #EnemSeguro

Com o aumento de casos de contaminados e óbitos por covid-19 e das desigualdades educacionais, voltou a crescer o movimento que pede o adiamento do Enem. 

Em maio de 2020, a Ubes organizou uma campanha que tomou as redes sociais pedindo o adiamento do exame. Nas últimas semanas, estudantes de todo o país reviveram a hashtag para pressionar o MEC e o governo federal pelo adiamento da prova. A entidade também lançou a hashtag #EnemSeguro. O MEC chegou a realizar uma consulta aos estudantes de todo o país sobre o assunto, mas não seguiu o resultado da votação para definir um novo calendário para o exame.

“Não somos contra a realização do Enem, queremos que seja realizado, mas de forma segura, com um protocolo de segurança claro e que possamos ter diálogo e garantir o acesso à educação. Na nossa opinião, quem quer nos impedir de realizar a prova é o MEC, que não nos dá condições seguras para realizá-la. Por isso, defendemos nesse momento o adiamento do Enem para que ele possa ser realizado de uma forma mais segura”, destaca Rozana Barroso, lembrando que o exame não pode ser cancelado porque teria um impacto ainda maior para os estudantes. 

O professor Vinicius Machado concorda com o adiamento do Enem e vê a realização do exame agora como uma medida precipitada, principalmente devido à alta nos números da  pandemia. “A escolha da data não levou em consideração a opinião dos estudantes. E sua realização neste momento, em um país que não lidou da forma correta com a pandemia, e quer colocar mais de 5 milhões de estudantes em um local fechado para realizar uma prova da importância do Enem, é muito precipitada. É não levar em consideração o ambiente de saúde  e os riscos que temos hoje”. 

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Apesar de o MEC não ter voltado atrás na realização do Enem, prefeituras e instituições fazem coro à reivindicação dos estudantes. A Defensoria Pública da União (DPU) entrou este mês com um novo pedido de ação civil pública pedindo novamente o adiamento das provas. Em Manaus, a 3ª Vara Federal Cível do Amazonas suspendeu a aplicação do exame no estado por causa da segunda onda da pandemia.

Já em São Paulo, a Justiça Federal negou o pedido de adiamento das provas. As datas foram mantidas, mas foi decidido que os municípios têm autonomia para impedir a realização do exame e, se isso acontecer, o Inep terá que reaplicar a prova. O Inep informou  que ainda será marcada uma data especial para as cidades que considerarem a realização do Enem perigosa no contexto da pandemia de Covid-19.

Para Ana Carolina Venturini, pesquisadora do Afro Cebrap, a prova deveria ser adiada por conta do risco de contágio, mas há outros fatores que precisam ser analisados nesta decisão: “Ao mesmo tempo, temos o dilema de que para muitos estudantes essa é uma oportunidade única de tentar a prova para entrar em uma universidade pública ou particular. É importante lembrar que para muitas famílias brasileiras o caminho do ensino médio para o ensino superior não é uma coisa automática. Então, há o risco de que se o estudante não fizer a prova esse ano, outras demandas da vida impeçam que ela faça novamente. São vários fatores que precisam ser analisados, mas seria fundamental que o governo ouvisse a comunidade acadêmica e estudantes, o que não fez”, afirma a especialista em ações afirmativas na educação. 

Além disso, lembra a pesquisadora, o adiamento do Enem impacta diretamente o calendário das universidades públicas, já que a maioria aderiu ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Algumas universidades, porém, já informaram que o Enem não será utilizado no processo seletivo para ingresso em 2021, e esse número pode crescer, o que impactaria o processo de inclusão social, racial e regional derivado das políticas de ação afirmativa nas instituições públicas de ensino superior.

* Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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