P
aula**, uma adolescente de 16 anos, ao perceber que sua menstruação estava atrasada, introduziu dois compridos de um remédio denominado “Permanganato” (usado para tratamento de coceira e cicatrização de feridas comuns da pele) em sua vagina, antes de dormir. No dia seguinte, ao acordar, percebeu que estava sangrando e foi levada a um hospital-maternidade da cidade, onde foi realizada a curetagem (procedimento médico realizado para limpar o útero). Depois de três dias foi liberada. Como o aborto é crime no Brasil, ela foi denunciada e processada pela Justiça.
Por ser a garota menor de idade, o caso foi considerado um ato infracional e seu nome entrou no Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei. A adolescente, mesmo com pouca idade, já era mãe de uma menina de quase dois anos na época do aborto. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal em caso semelhante criou jurisprudência para que a ação contra Paula fosse arquivada há uma semana.
O caso da jovem não é isolado. Foram registrados pelo menos 1.313 processos pelo crime de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, tipificado no artigo 124 do Código Penal. As informações foram obtidas pela Gênero e Número no Justiça em Números, banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e correspondem aos processos de 2015 a 2018. Ainda que haja mais processos sobre o tema (o banco depende do envio de informações do Poder Judiciário dos estados), os números já dão uma dimensão da criminalização das mulheres que decidem interromper a gravidez.
No Brasil, o aborto é permitido apenas em três situações: em caso de risco de vida para a gestante, quando a gestação é decorrente de estupro ou quando o feto é anencéfalo. Nos demais casos, o Código Penal prevê que a mulher que realiza o próprio aborto pode ser condenada de um a três anos de prisão em regime fechado. Já quem realiza o procedimento com o consentimento da gestante tem pena de até quatro anos.
“A criminalização faz com que as mulheres tenham que necessariamente buscar métodos clandestinos que podem colocar sua saúde e vida em risco. A mulher morre injustamente por não poder realizar a interrupção da gravidez de maneira segura. Esse efeito da criminalização pode até ser mais grave que o encarceramento. Por isso, é importante discutir todos os aspectos, porque as consequências que estão fora do sistema penal podem ser mais graves”, diz Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
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A criminalização não quer dizer necessariamente que as mulheres que abortam vão cumprir sua pena presas. O art. 89 da Lei 9.099/95 dispõe que, nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano, poderá ser proposta a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que a acusada apresente uma série de requisitos, tais como ter bons antecedentes. Por isso, na maioria dos casos de mulheres processadas por aborto elas não precisam enfrentar um júri nem ser encarceradas, segundo as especialistas ouvidas pela Gênero e Número nesta reportagem. Nesse caso, o juiz extingue a ação e o Estado não pode mais punir criminalmente a mulher.
“Os processos existentes mostram que a mulher ocupa um lugar de muita vulnerabilidade. Só o constrangimento de ser processada criminalmente já cria um estigma. Ela só é criminalizada porque aborto é crime no Brasil. Porque, caso contrário, não teria qualquer envolvimento com o sistema de justiça”, pontua Carolina Haber, diretora de Estudos e Pesquisas e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).
São Paulo é o estado com o maior número de processos motivados por aborto provocado pela gestante. Ao todo, foram 230 ações entre 2015 a 2018. No último ano analisado, 2018, o Rio de Janeiro foi o estado que mais registrou processos (43). O estado está em segundo lugar durante os quatro anos analisados.
A reportagem da Gênero e Número solicitou os dados sobre os processos por aborto voluntário por duas vias: com o CNJ, que disponibilizou os dados, e com os Tribunais de Justiça das 27 unidades federativas. Até o fechamento da reportagem, apenas Rio de Janeiro, Espírito Santo, Distrito Federal, Pará e Ceará enviaram as informações. Entre os cinco estados, foram registrados 41 processos relativos ao aborto realizado pela gestante ou com seu consentimento entre janeiro e agosto de 2019.