Por que é importante ampliar o número de mulheres na política?

Por Flavia Biroli*

Giulliana Bianconi

No Brasil, o tema da sub-representação das mulheres na política entrou no debate público com a transição para a democracia, ainda nos anos 1980. Começo este texto por esse ponto porque me parece importante o contraste entre um momento em que a política era largamente masculina, mas isso era pouco visível como um problema fora dos círculos de organizações de mulheres e feministas, e o momento atual. Hoje, as fotos que revelam os cerca de 90 homens para cada 10 mulheres na Câmara dos Deputados são mais do que uma imagem conhecida. A ideia de que a sub-representação das mulheres é um problema da democracia e que consiste em uma injustiça é agora partilhada por largos setores da sociedade brasileira. Ganhou terreno o entendimento de que não é “natural” que a igual cidadania seja acompanhada por barreiras para seu exercício por mais da metade da população.

Tem sido árduo o caminho do direito ao exercício do voto no Brasil. Vale lembrar que, se o voto das mulheres foi conquistado em 1932 e exercitado a partir de 1946, com o fim da ditadura do Estado Novo, foi apenas com a Constituição de 1988 e após o fim de mais uma ditadura, aquela instaurada em 1964, que a população analfabeta passou a ter direito a votar nas eleições.

Quando falamos em participação, no entanto, há algo mais do que o voto em jogo. O direito a votar pode ser definido como uma forma relativamente fraca de igualdade política se não é acompanhado por chances reais de se eleger. É que o voto corresponde à escolha, por um eleitorado amplo, de quem vai atuar politicamente nos espaços de tomada de decisão, enquanto a baixa aleatoriedade de gênero no acesso a cargos significa que as mulheres são excluídas sistematicamente de tomar parte no grupo dos que decidem efetivamente quais serão as leis e políticas vigentes no país.

É disso, portanto, que falamos quando discutimos a sub-representação das mulheres. Embora sejam mais da metade da população brasileira, estão presentes em proporção muito menor nos espaços de governo, algo que tem sido reposto historicamente. Gostaria de, muito brevemente, indicar porque isso é um problema e onde estão os “gargalos”, isto é, as práticas que impedem que as mulheres, que são tão ativas na vida pública brasileira, permaneçam sub-representadas na política.

Começo pela importância da presença delas nos espaços de poder.

No cotidiano da sociedade, as mulheres passam por situações diferentes das dos homens e que modelam suas alternativas de vida, suas trajetórias. Essa diferença não expressa algo natural e que, portanto, não possa ser confrontado caso se trate de uma injustiça. Expressa, sim, determinados modos de nos organizarmos e pensarmos.

A violência sofrida pelas mulheres é um dos desdobramentos do machismo e apresenta padrões diferentes dos da violência que atinge os homens no país. Ao mesmo tempo, elas enfrentam desafios que não são idênticos aos deles no mercado de trabalho: o acesso à educação não se traduz, para elas, em cargos e salários do mesmo modo que se traduz para eles. Como sabemos, embora tenham hoje mais tempo de estudo do que eles, continuam a receber salários menores nas mesmas ocupações e a ser a maior fatia entre as pessoas que buscam emprego e as que exercem trabalho precarizado. Por serem as principais responsáveis pelo cuidado, a falta de creches e a redução dos investimentos em políticas públicas voltadas para a saúde e para o amparo às pessoas idosas e com deficiência as atinge de maneira aguda, com impacto sobretudo para as mulheres mais pobres que, no Brasil, são em sua maioria negras. Ao mesmo tempo, as mulheres são afetadas diretamente por leis e políticas que, de um lado, não respeitam sua escolha de ser ou não mães e, de outro, lhes retiram a possibilidade de exercer com dignidade a maternidade e de ver seus filhos crescerem em ambientes adequados ao seu desenvolvimento e sem que suas vidas estejam permanentemente em risco. Novamente, mulheres negras e moradoras da periferia são afetadas de maneira aguda.

Faz diferença se quem está nos espaços de tomada de decisão vivencia esses problemas e tem que buscar soluções para eles em seu cotidiano. Trata-se de algo que vai além da defesa ou não de determinadas agendas: as questões que indiquei brevemente acima podem ser invisíveis para os homens que ocupam cargos públicos. Podemos discutir, por exemplo, em que medida podem existir, entre os homens, níveis de interesse semelhantes aos das mulheres quando os direitos reprodutivos estão em questão. Podemos, ainda, analisar em que medida legislações trabalhistas que dificultam a necessidade de cuidar de outras pessoas aparecem para eles como problemas tão agudos quanto para elas. É seguindo essas indagações que se pode, então, compreender o potencial de deslocamentos na agenda pública quando há mais mulheres nos espaços de deliberação e decisão.

Ao mesmo tempo, em uma sociedade na qual altíssimos níveis de desigualdade – que não se limitam ao gênero, mas explicitam o racismo, as hierarquias de classe e a homofobia, limitam as garantias mais básicas de vida e bem-estar, a eleição de mulheres não é, como tal, suficiente se for descompromissada com a construção de uma sociedade mais justa. Chamo a atenção, no entanto, para o fato de que sua exclusão é, em si, uma injustiça e um déficit democrático. O cenário de profunda sub-representação das mulheres na política, que temos tido dificuldade para superar, reduz a possibilidade de que mais da metade da população tenha sua experiência e seus interesses levados em conta no âmbito estatal. É um quadro que contradiz qualquer movimento para a construção de uma sociedade justa e democrática.

E por que é assim? Ou, para repetir o termo ao qual recorri anteriormente, onde estão os “gargalos”?

É cada vez menos comum, mas ainda presente em algumas faixas do debate público, a justificativa de que é assim porque as mulheres não querem fazer política. Sua participação onde há menos obstáculos a elas, como na organização de movimentos sociais e sindicatos e nos espaços institucionais de participação, evidencia justamente o contrário.

Por que, então, o número de candidatas é menor do que o de candidatos? Para as eleições de outubro de 2018, as mulheres são 30,7% das candidaturas registradas no Tribunal Superior Eleitoral. Não é uma coincidência que esse seja o percentual definido pela legislação de cotas brasileira para as listas eleitorais partidárias. Há duas maneiras de interpretar esse dado. Uma é que os partidos estão sendo obrigados a buscar mulheres, que não estariam muito interessadas em candidatar-se. Outra é que quando há espaço para candidatar-se, elas o fazem, mas os partidos limitam sua oportunidade ao mínimo definido na lei.

A longa história de quase-monopólio masculino sobre a política se expressa nos partidos. Com ampla maioria masculina em sua direção na maior parte dos casos e privilegiando quem já faz parte do jogo político-partidário, colocam em ação vieses que são desvantajosos para as mulheres: investem menos em suas candidaturas do que nas dos homens, abrem menos espaço para elas na propaganda partidária e nas ações de campanha, não adotam medidas para reduzir preconceitos e violências contra elas.

A distância entre o voto e a atuação política nos espaços decisórios se expressa aqui na medida em que as barreiras para que mulheres e homens obtenham apoio a suas candidaturas são distintas. Há, ainda, um acúmulo de pesquisas, mundo afora, mostrando que, além das barreiras que encontram nos partidos, encontram dificuldades para conciliar a vida política com as expectativas ainda existentes quanto ao papel das mulheres na sociedade – a divisão sexual do trabalho lhes retira tempo e recursos e tem uma dimensão moral que explica porque ainda há estereótipos negativos relacionados a sua participação política. Outro ponto importante, também crescente no debate internacional, é que assédio e outros tipos de violência simbólica e física as atingem quando “ousam” participar da vida pública.  A violência contra as mulheres na política é, hoje, um tema que desponta na análise das reações à ampliação do equilíbrio de gênero na política. Trata-se de uma reação que procura manter a política como um refúgio masculino.

Se de um lado há dinâmicas que reproduzem as desigualdades, de outro, cresce, como disse no início desse texto, a percepção de que uma política sem mulheres não pode ser democrática. E que um país que as trata com violência e lhes recusa direitos não pode ser justo. É por isso que, tão fundamental quanto apoiar a eleição de mulheres, é analisar o grau de compromisso de uma candidatura com a igualdade de gênero. Afinal, estamos falando da possibilidade não apenas de que mulheres se elejam, mas de que tenhamos representantes comprometidos com a construção de um mundo melhor para todas as mulheres.

 

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*Flavia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Uiversidade de Brasília. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil.

Este conteúdo faz parte do Observatório Brasil 50-50

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Giulliana Bianconi

É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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