Prática contra mulheres é oriunda de representações sociais de gênero e começa na infância | Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

A dor da alma: Explícita na Lei Maria da Penha, violência psicológica faz 50 mil vítimas entre mulheres por ano, mas ainda não conta com punição

De acordo com dados do Ministério da Saúde,  48% das mulheres que deram entrada em unidades de saúde sofrendo violência psicológica apontaram seus namorados, cônjuges ou ex-parceiros como autores

Por Lola Ferreira*

  • Amparo ao invisível

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  • A violência silenciosa

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  • Percalços do processo

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  • Prevenção como caminho

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Há exatos 13 anos a lei Maria da Penha era sancionada. De lá para cá, já foi alterada seis vezes e se tornou o principal mecanismo em âmbito legislativo para coibir a violência contra as mulheres. Seu artigo 5º define que violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação que resulte em sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial da vítima. Apesar de estar explícita no texto, uma das formas de agressão mais comuns ainda é minimizada: a violência psicológica.

Dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde, analisados pela Gênero e Número mostram que somente em 2017, último ano com números disponíveis, houve 78.052 casos de violência psicológica em todo o país. Mulheres foram vítimas em 81% destes casos. Apesar do grupo que mais registrou aumento proporcional entre 2014 e 2017 ter sido o de homens — os casos dispararam de 8.005 para 14.910, um aumento de 86% — as mulheres continuam sendo as vítimas mais numerosas. O aumento proporcional para mulheres foi de 36% no número de casos no período.

 

Ainda em 2017, em 75% dos casos mulheres também foram vítimas de violência física, e em 11% dos casos houve estupro. Os dados do Sinan permitem assinalar mais de uma violência por vítima. 

Zaira de Andrade Lopes, doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do grupo que discute Gênero e Psicologia na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), avalia que o aumento de registros pode ter relação com o aumento da conscientização: “A lei Maria da Penha é um instrumento jurídico que permite dar visibilidade à violência, que é oriunda das representações sociais de gênero”.

Amparo ao invisível

A lei Maria da Penha especifica esses casos. O texto determina que a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause “dano emocional e diminuição da autoestima” ou “prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”. E explica que isso pode acontecer de diferentes formas: ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, etc, ou “qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”. 

É um espectro bastante amplo, mas que ainda encontra dificuldades no campo da punição. Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Isadora Vier Machado é autora do livro “Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha”. Em entrevista à Gênero e Número, a pesquisadora explica que a lei Maria da Penha trouxe à legislação brasileira não a configuração de um crime, mas tão somente um novo parâmetro interpretativo. Professora de Direito na Universidade Estadual do Maringá (UEM), ela também destaca que ainda não existe o crime de violência psicológica no Brasil.

“Qualquer crime que queiramos aplicar para um agressor no âmbito da lei Maria da Penha temos que buscar na legislação penal. E hoje não existe crime de violência psicológica. Então a proteção das mulheres para esse tipo específico de violência é residual: ou com a aplicação das medidas protetivas de urgência ou com a configuração de crimes que não são específicos de violência psicológica, como ameaças, constrangimento ilegal e outras figuras existentes na lei penal, como injúria e difamação”, explica.

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Em 2018, o deputado federal Carlos Sampaio (PSDB/SP) protocolou projeto de lei na Câmara para tipificar o crime de violência psicológica contra a mulher. A intenção do PL é alterar o Código Penal e incluir a prática no artigo 132, que tipifica o “perigo para a vida ou saúde de outrem”. O texto define que qualquer ação como as enquadradas no conceito de violência psicológica da Maria da Penha deveria se registrada como tal e render punição de dois a quatro anos ao agressor. Apensado a um outro PL (6622/2013) mais antigo, também de Sampaio, o texto está parado.

Na legislatura que iniciou este ano, a deputada Aline Gurgel (PRB/AP) apresentou o PL 3441/2019. A ideia da parlamentar foi tipificar o crime de violência psicológica contra a mulher como um crime de tortura. Na justificativa, Gurgel explicou que a distinção seria benéfica porque, atualmente, os crimes que podem ser classificados como violência psicológica, como calúnia, difamação e constrangimento, não resultam na “manutenção do agressor na cadeia” na maioria dos casos. O texto foi apensado também ao 6622/2013.

Isadora Machado explica as dificuldades de implementar esta lei: “A tortura é uma questão bem específica, em que tem de haver uma relação de hierarquia, de guarda ou de cuidado de quem pratica o crime contra quem sofre. Então, dificilmente a tortura seria aplicável a um caso de violência doméstica, a não ser que seja uma relação entre o agressor e a agredida em que ela esteja em um cárcere privado. Mas com certeza seria uma hipótese que iria muito além da violência psicológica”.

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A violência silenciosa

Um cruzamento simples de dados permite compreender que a violência psicológica sofrida pelas mulheres é uma questão de gênero: o Sinan mostra que 48% das mulheres que deram entrada em unidades de saúde sofrendo violência psicológica apontaram seus namorados, cônjuges ou ex-parceiros como autores. No caso dos homens, os principais algozes são familiares, como pais, mães e irmãos, que correspondem a 40% dos casos.

 

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Zaira Lopes explica que essa diferenciação tem a ver com a idade das vítimas. Na infância, ambos os gêneros são suscetíveis a essa violência, mas na idade adulta, é o “feminino” que ainda está sujeito ao “masculino”.

“No caso de violência psicológica familiar, ela é direcionada às crianças, independentemente de gênero. Mas na cultura do patriarcado, os parceiros e os ex-parceiros tendem a tomar a mulher como posse. O homem é criado para ser ‘forte e viril’ e a mulher para ser ‘entregue’ a ele. Com isso, o menino é educado para a violência”, analisa Lopes, que contextualiza esses dados. 

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Essa violência nem sempre se converte em agressão física. Quando tinha 29 anos, a jovem Carolina** foi vítima de violência psicológica. Na ocasião, o namorado fazia questão de diminuí-la intelectualmente, afirmava que era fácil ser um professor concursado porque “até ela” conseguiu aprovação. “Eu voltava do trabalho, na universidade, arrasada. Eu era consumida por uma culpa enorme, me sentia péssima”, contou a professora. Ela relembra que, em alguns momentos, chegou a duvidar da própria capacidade intelectual e “se sentir burra”.

“Eu estava em um estado psicológico muito debilitado, e só queria me livrar dele. Nem quis denunciá-lo, porque não tinha forças. Eu tive tanta vergonha que demorei, inclusive, a contar para as minhas amigas”, relembra ela, que hoje é professora e conseguiu superar o episódio.

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Eu voltava do trabalho, na universidade, arrasada. Eu era consumida por uma culpa enorme, me sentia péssima. — Carolina, vítima de violência psicológica em um namoro

Lopes ressalta que é fundamental a vítima buscar uma rede de apoio, nem que seja na figura de uma só pessoa: “A mulher, sozinha, muitas vezes não consegue identificar a violência que está sofrendo, principalmente a psicológica. A rede de apoio e os profissionais são fundamentais para que ela possa compreender”.

Para mulheres que acreditam estar sofrendo qualquer tipo de violência doméstica, o Disque 180 é um serviço gratuito que recebe denúncias e promove encaminhamento dos casos. Além disso, as delegacias especializadas de atendimento à mulher, e também qualquer delegacia policial, podem registrar boletins de ocorrência.

Percalços do processo

O caminho da delegacia foi o que fez a estudante Juliana** ao perceber que vivia uma relação com violência psicológica. Aos 19 anos, tinha um namorado ciumento e que criava atritos com a família da jovem. Ela não via problemas, até o dia em que foi agredida pelo rapaz no pátio da universidade em que estudavam. “Foi aí que eu entendi: os ciúmes eram excessivos, eu me afastei dos meus amigos, briguei com minha família. Ele me manipulava”, disse a jovem à GN

Na ocasião, Juliana denunciou o caso à polícia e deu andamento a um processo que foi tão penoso quanto o episódio: “Quando ele me bateu, contou que havia me traído e eu o arranhei. Por conta disso, fui completamente coagida no processo a entrar em um acordo. E a medida protetiva não serviu de nada, porque ele continuava me perseguindo. Foi uma experiência horrível, me senti completamente desamparada”, relembra.

Hoje, Juliana tem 33 anos e é psicóloga. Para ela, a profissão ajudou muito a superar o trauma, bem como o atual casamento, que é saudável. Como profissional e vítima, ela avalia que o sistema ainda tem muito a avançar no amparo à mulher: “É um processo solitário. Eu fui juntando meus pedaços sozinha e aprendendo que isso não me define”.

Isadora Machado destaca que a dificuldade de comprovar a violência contra a mulher ainda é grande, mas nos últimos anos o relato da mulher como prova fundamental em um processo de violência ganhou mais valor. 

“O ideal é tentar guardar mensagens e as provas testemunhais. Ou seja, indicar no registro quem já ouviu ou quem viu a pessoa que praticou essa violência psicológica, nomear as eventuais testemunhas, reunir bilhetes, notas. Mas é preciso levar em consideração que há dificuldade probatória acentuada nos casos de violência psicológica”, orienta.

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É preciso levar em consideração que há dificuldade probatória acentuada nos casos de violência psicológica. — Isadora Machado, professora de Direito e autora do livro "Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha"

Prevenção como caminho

Machado também acrescenta que, pela dificuldade do Direito em reconhecer a violência psicológica, há maior necessidade de investimento nas ações preventivas. A pesquisadora atenta para a queda do investimento nas estruturas voltadas à mulher e para o crescente discurso contrário à discussão sobre equidade de gênero na educação.

O inciso V do artigo 8º da Lei Maria da Penha determina promoção dos termos da lei no ambiente escolar, mas isso não acontece nem em metade das unidades federativas, conforme levantamento da Gênero e Número. E até dezembro de 2018, o governo federal havia reduzido em 68% o investimento da Secretaria de Políticas para Mulheres em ações pela cidadania das mulheres.

“Mesmo que existam projetos para aumentar a pena para os crimes que são aplicáveis em casos de violência psicológica, ou outros mecanismos, se não vierem acompanhados de um sistema preventivo, de um investimento público na educação na igualdade de gênero, nunca vão ser suficientes ou eficazes para cessar esse tipo de violência”, finaliza.

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

**Os nomes das vítimas que deram seus depoimentos para esta reportagem são fictícios.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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