Foto: Claudionor Jr / Secretaria de Educação da Bahia

Organizações recorrem à Justiça para efetivar lei de ensino de história e cultura afro-brasileira

Entidades da sociedade civil reivindicam no Judiciário e levam ao STF a implementação da lei 10.639, que completa 15 anos em 2018; regulamentação pouco específica dificulta fiscalização, diz pesquisador

Por Vitória Régia da Silva*

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  • Onde estão os dados?

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  • Regulamentação pouco específica

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  • O racismo como impedimento à efetivação da lei

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A lei 10.639/2003, que incluiu no currículo escolar a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, acaba de completar 15 anos. Vitória do movimento negro, a lei ainda hoje é descumprida por estabelecimentos de ensino em todo o país, o que levou organizações da sociedade civil a moverem ações na Justiça para fiscalizar e garantir a efetivação da norma.

Um dos desdobramentos mais recentes nesse movimento foi uma sentença favorável à verificação do cumprimento da lei no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. No fim de março, a Justiça do Rio deu ao Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-brasileiros (Ipeafro) e ao Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) o direito de realizar uma perícia sobre a aplicação da lei na cidade da Baixada Fluminense.

“Percebemos que a política não resolve tudo. Por isso, temos que ficar cobrando no Judiciário”, disse Humberto Adami, advogado da ação e representante do IARA, a Gênero e Número. “Deveríamos ter uma ação dessa em cada município do Estado e do país para garantir a implementação da lei. Não sabemos sequer se as escolas estão cumprindo a lei, e elas têm que comprovar isso.”

A ação civil pública refere-se a unidades da rede municipal, estadual e privada de Duque de Caxias e conseguiu a perícia judicial dos currículos, grades curriculares e conteúdos das escolas para que seja verificado o cumprimento da lei – ainda cabe recurso. A perícia também vai analisar o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial, que estabelece o ensino da história da população negra no Brasil, e a lei 11.645/08, que inclui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena.

Doutor Humberto Adami há mais de 10 anos luta pela implementação da lei 10.639

“Desde o momento em que se cria uma lei para implementar uma política pública, o sistema de Justiça tem que garantir o cumprimento dessa lei”, disse a diretora presidente do Ipeafro, Elisa Larkin Nascimento, a Gênero e Número. “Em um país de maioria negra, a questão não é criar um processo criminal ou acusatório, mas usar os mecanismos oferecidos pelo Judiciário para garantir uma política que está inscrita na lei e que interessa a toda a sociedade.” Segundo Nascimento, a intenção do Ipeafro não é só monitorar e fiscalizar, mas trabalhar junto com a gestão pública para aprofundar essa política.

A expectativa das entidades é que a sentença alcançada em Duque de Caxias seja repetida em outras cidades – IARA, Ipeafro e a ONG Criola entraram em 2014 com ações similares nos municípios de Rio de Janeiro, Nova Iguaçu e São João do Meriti. As ações ainda tramitam na Justiça e não têm prazo para serem julgadas.

Essa não foi a primeira vitória na Justiça pela efetivação da lei 10.639. Em julho de 2017, a Justiça de Minas Gerais determinou que o Estado e o Município de Uberlândia devem incluir o ensino do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no ensino fundamental e a História da Cultura Afro-brasileira nos ensinos médio e fundamental. A ação havia sido proposta pela Promotoria de Defesa da Criança e do Adolescente de Uberlândia em abril de 2009. A sentença estabeleceu que até julho de 2018 os professores deverão estar capacitados para ensinar as disciplinas e as escolas municipais e estaduais deverão aprovar novos projetos e implantar políticas educacionais específicas, sob pena de multa diária de R$ 10 mil até o limite de R$ 1 milhão.

Luta pela lei no Supremo Tribunal Federal

“Quando começamos as ações tínhamos quatro nãos: não tem dinheiro, não tem livro, não tem professor e não tem currículo. Hoje, temos outra realidade, mas ainda não conseguimos implementar a lei completamente”, avalia o advogado Humberto Adami, que ressalta que há mais de uma década o movimento negro pede na Justiça que a lei 10.639 seja cumprida.

“Em 2005, eu e mais 15 entidades do movimento negro fizemos representações ao Ministério Público Federal”, conta. Essas denúncias foram espalhadas pelo Brasil por meio dos MPs de cada Estado, que deveriam intimar cada município. “A partir disso, abriram-se inquéritos civis públicos, com cada promotor ou procurador intimando as secretarias de educação e as diretorias de escolas para saber porque estavam descumprindo a lei”, explica. Segundo Adami, todos os 92 municípios do Estado do Rio receberam essa intimação, embora as entidades não tenham uma sistematização dessas representações.

Entre 2009 e 2011 Adami trabalhou como ouvidor da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e enviou 1.200 ofícios cobrando que universidades públicas e privadas oferecessem formação sobre cultura e história afro-brasileiras. Segundo ele, a maioria destes processos foi arquivada.

 

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A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal em 2013 pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental e por Antônio Gomes Costa, doutorando em Educação pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em relações étnico-raciais na educação básica. A ação cobra a Presidência da República e 44 universidades federais, entre outras instâncias, por não fiscalizar e exigir a criação de disciplinas sobre o tema. A relatora do mandado de segurança é a ministra Rosa Weber. Não existe um prazo para que o STF julgue a ação, parada há cinco anos.

“Não podemos só pensar nessa lei sendo implementada para o ensino básico, porque para os professores trabalharem essa temática em sala é preciso que ela esteja nos currículos de formação dos educadores nas universidades”, disse Nascimento, do Ipeafro.

Onde estão os dados?

Para além das ações, o debate sobre a lei é muito importante, diz Costa, que tratou em sua dissertação de mestrado sobre o ensino religioso e as religiões de matrizes africanas. “As decisões judiciais propiciam uma situação concreta, que é levar um tema periférico para o local central da discussão. Você passa a discutir com autoridades que podem tomar uma resolução de fato”, afirma.

“A lei é de 2003 e os mecanismos de avaliação e monitoramento nunca foram implementados. Por quê? Eu só posso acreditar por omissão”, avalia Costa, para quem a sociedade civil pode fazer o controle social, acompanhando e cobrando o cumprimento da lei, embora isso não seja simples. “Não temos informações precisas e nem publicização de dados. A sociedade tem uma função muito importante, mas infelizmente o custo operacional é alto e a longo prazo, o que acaba esvaziando esse movimento social de conseguir que o pleito seja alcançado.”

Antonio Gomes Costa pesquisa relações étnico raciais na educação

Em nota a Gênero e Número, a assessoria do MEC informou que “apoia os sistemas de ensino no desenvolvimento de política de formação continuada de professores e gestores para que a escola possa cumprir o seu papel na formação e transformação social”. O Ministério também afirmou que “já produziu e distribuiu publicações com o objetivo de subsidiar os sistemas de ensino no cumprimento da legislação”, e algumas delas podem ser acessadas no site do MEC voltado para a educação para as relações étnico-raciais.

Em março, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) assinou com a Seppir um termo de cooperação técnica para boas práticas da lei 10.639. A iniciativa pretende fomentar o desenvolvimento e a implementação de ações voltadas à identificação e divulgação de boas práticas de escolas públicas e privadas na efetivação da lei. A ação imediata prevista é a distribuição de material pedagógico sobre a história da cultura afro-brasileira e dos quilombos na região sul do país.

Regulamentação pouco específica

A lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas, foi a segunda assinada pelo então presidente Lula, em janeiro de 2003. A legislação estabeleceu a  inclusão no currículo do ensino fundamental e médio do estudo da “História da África e dos Africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.

“Historicamente, as culturas africana e afro-brasileira foram invisibilizadas no ambiente escolar, ou pior, foram representadas de modo pejorativo, com ênfase em aspectos subalternos”, disse Giselle dos Anjos Santos, doutoranda em História Social pela USP e consultora do Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), a Gênero e Número. “A história do povo negro não pode mais ser retratada apenas como sinônimo do tráfico escravo, como historicamente se deu nas escolas brasileiras.”

Em 2004, um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) regulamentou a lei, estabelecendo Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. De acordo com o documento, os sistemas de ensino devem relatar os resultados da aplicação da lei, com a divulgação das conquistas e dificuldades do ensino, ao Ministério da Educação (MEC), à Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ao Conselho Nacional de Educação e aos respectivos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação. O parecer não estabelece, no entanto, como esses relatórios devem ser feitos e com que frequência.

Segundo Antônio Gomes Costa, as orientações do CNE não são específicas o suficiente para garantir a efetivação da lei. “É necessária uma reformulação do parecer do Conselho Nacional de Educação. O parecer previu dificuldades de implementação a princípio, mas a médio e a longo prazo a lei seria fortificada. Se ele fosse efetivo, não teríamos os problemas que encontramos hoje para implementação” da lei, afirmou.

Erika Larkin Nascimento, diretora da Ipeafro, busca na Justiça a implementação da lei de ensino de história afro brasileira. Foto: Milsoul Santos

O racismo como impedimento à efetivação da lei

Mesmo tantos anos após a lei, 24% das escolas de ensino público do Brasil não abordam o racismo em seus projetos temáticos. O dado é do Censo Escolar 2015, o mais recente sobre o tema.

Autora da cartilha “Somos todas rainhas”, sobre a história de mulheres negras no Brasil, Giselle dos Anjos Santos acredita que é justamente o racismo que compromete o cumprimento da lei 10.639. “É negado o seu caráter transversal, interdisciplinar, e o seu sentido essencial para a edificação de novos paradigmas para a sociedade brasileira”, afirma. “Falta vontade política e o real entendimento da importância de abordar essa temática nas escolas.”

Apesar disso, Nascimento, do Ipeafro, vê avanços significativos nos últimos 15 anos, “sobretudo na ampliação da discussão entre os educadores e gestores de políticas públicas de educação sobre a necessidade do ensino de história afro-brasileira nos currículos escolares e universitários”. “Existe pontualmente a implementação da lei em algumas instituições, muitas vezes em razão do esforço de comunicadores negros e negras”, afirma.

*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Mais sobre Educação: https://www.generonumero.media/edicao-09/

Contato: https://www.generonumero.media/contato/

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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