Onde estão as mulheres negras nas grandes produções do cinema nacional?

Nos 219 filmes nacionais de maior bilheteria dos últimos vinte anos, nenhuma mulher negra atuou como diretora ou roteirista

Por Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

Homens brancos são a cara dos blockbusters nacionais, enquanto mulheres negras ainda são sub-representadas na frente e atrás das câmeras, revela pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O levantamento mostra que mulheres negras, apesar de serem cerca de 30% da população brasileira, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílio (PNAD) de 2015, representam apenas 4% do elenco dos filmes analisados entre 1995 e 2016. Nesse período, nenhum dos mais de 200 filmes nacionais de maior bilheteria teve uma mulher negra na direção ou como roteirista.

Coordenado pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da UERJ, o boletim “Perfil do Cinema Brasileiro (1995 – 2016)” analisou os elencos, roteiristas e diretores(as) dos 10 filmes de maior público de cada ano, totalizando a análise de 219 produções audiovisuais. Os dados foram disponibilizados pelo Observatório Brasileiro de Cinema e Audiovisual (OCA – ANCINE).

Ellen Paes é jornalista, ativista negra e diretora do documentário #EuVocêTodasNós, sobre feminismo na Internet.  Segundo ela, as mulheres negras estão onde as produções são mais baratas, como documentários e curtas, mas não nas grandes produções de cinema, e essa subrepresentação tem raízes históricas. “Cinema é uma atividade muito difícil de acessar, até pra quem conseguiu fugir à estatística, como eu. Não é por acaso que não estamos expressivamente neste setor. Sobretudo nas grandes produções, nas que vendem mais.”

Ellen conta que conhece poucas diretoras mulheres e, dentre elas, o número de negras é ainda menor: “É vergonhoso estar no lugar da exceção. No lugar em que a todo momento a sua autoridade será questionada, o seu conhecimento colocado à prova. A autoestima da gente é construída para não acreditarmos que podemos ser boas no que fazemos, e quanto mais somos exceção, mais essa violência se configura.”

Doutora em História, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Itinerante do Cinema Negro (FICINE), Janaína Oliveira reforça a posição de Ellen e explica que o desafio do audiovisual é se transformar, de fato, em um lugar de representação da maior parte da população do país. “Quando colocamos a interseccionalidade de gênero e raça é porque constatamos que nessa relação as mulheres negras são subrepresentadas. Temos o desafio de trazer o debate de forma interseccional.”

Segundo Marcia Rangel Candido, doutoranda em Ciência Política no IESP-UERJ, pesquisadora associada do GEMAA e uma das autoras do boletim, a cara do cinema nacional, representada pelos filmes de maior bilheria,  reflete a  dominação de pequenos grupos sobre as narrativas, o que perpetua a violência simbólica às mulheres, sobretudo às negras: “A diversidade dos grupos sociais e dos modos de vida é claramente deixada de lado em narrativas nas quais predominam papéis de protagonismo para homens brancos heterossexuais, enquanto aos outros, o pequeno espaço concedido é prioritariamente para a reafirmação de estereótipos negativos de gênero e de raça”, afirma.

Candido ainda aponta a importância de  análises que olham para gênero e raça simultaneamente, já que “a comparação entre os grandes grupos da população (homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras) mostra que, apesar das desigualdades de gênero serem agudas, não é possível ignorar a seriedade das assimetrias raciais no Brasil”.

Os resultados da pesquisa do GEMAA corroboram essa tese. O cruzamento entre gênero e raça permitiu observar que os homens brancos ocupam, praticamente isolados, as funções de grande visibilidade no cinema nacional de maior público. Quando olhamos para as mulheres, por sua vez, vemos que o grupo de cor branca é o que mais desfruta de espaço em comparação à pequena participação de negros e, especialmente, de mulheres negras, ausentes entre diretoras e roteiristas e pouco representadas nas telas.

Essa disparidade de gênero e raça no audiovisual está presente desde a formação dos profissionais na área. Algumas iniciativas, como o  Coletivo Carne e Osso, das estudantes de Rádio e TV da UFRJ, têm buscado romper este padrão, produzindo filmes feitos por mulheres e sobre mulheres. Júlia Araújo, uma das integrantes do coletivo, explica que a proposta surgiu depois do grupo de estudantes se dar conta da baixa participação feminina em funções técnicas ou de maior importância no cenário nacional de audiovisual, como  direção de fotografia, som, direção: “A estrutura nas universidades reflete as equipes do mercado audiovisual e também acaba contribuindo para a continuidade desse modelo, pois se as mulheres não têm oportunidade de exercer essas funções dentro da universidade acabam também não conseguindo emprego nelas”.

Às vezes chamado de Medida de Filme de Mo ou Regra de Bechdel, é um teste para avaliar se um filme faz bom uso de personagens femininas. O teste surgiu há 30 anos, numa tira da cartunista Alison Bechdel, para ironizar como Hollywood subrepresenta as mulheres. Em 2013, uma rede sueca de cinemas adotou essa análise como critério na hora de recomendar filmes aos frequentadores. O teste chegou ao Brasil esse ano. Para passar, a trama precisa cumprir três regras:

(1) tem que ter pelo menos duas mulheres
(2) pelo menos uma cena em que conversam entre si
(3) a conversa não pode ser sobre um homem.

Para Ellen Paes, é necessário lutar pela garantia de mecanismos de inclusão, seja por meio de cotas, seja por meio de editais com este recorte.  “O que não pode é a gente continuar invisível. Precisamos de meios para construir nossas próprias narrativas”, afirma. Para isso, seria necessário produzir mais pesquisas detalhadas que mostram onde estão as mulheres negras na indústria audiovisual, como a realizada pelo Gemaa.

“O Estado tem um papel fundamental no fomento de um cinema mais diverso e representativo porque ele é o maior financiador do cinema nacional. Grande parte da indústria funciona graças a fundos públicos. Nesse sentido, ele tem um papel determinante”, afirma Janaína Oliveira.  Atualmente, o Ministério da Cultura tem os editais Carmen Santos Cinema de Mulheres, destinado a mulheres, o Curta afirmativo e o Edital Longa BO Afirmativo, destinado a cineastas negros(as).

Afroflix

É uma plataforma colaborativa que disponibiliza conteúdos audiovisuais com, pelo menos, uma área de atuação técnica/artística assinada por uma pessoa negra. São filmes, séries, webséries, programas diversos, vlogs e clipes que são produzidos, escritos ou dirigidos ou protagonizados por pessoas negras.

Coletivo Vermelha

É um coletivo de diretoras e roteiristas criado em São Paulo, em 2014, cujo objetivo é compreender qual o espaço ocupado pelas mulheres no meio audiovisual, tanto nos seus processos de produção e funções, como nas formas em que as mulheres são representadas. O Vermelha se propõe a pensar criticamente a condição feminina e as relações de gênero, com a intenção de empoderar, dar visibilidade e criar um ambiente de cooperação entre as mulheres do audiovisual.

Mulher no cinema

É um site para celebrar o trabalho das mulheres nas telas. Foi criado e é escrito pela jornalista Luísa Pécora. Desde junho de 2015, o site divulga e discute o trabalho das profissionais da indústria cinematográfica nacional e estrangeira, publicando entrevistas, vídeos, críticas e pesquisas, além de reunir as principais notícias sobre o assunto. O objetivo é tanto dar voz às mulheres que fazem cinema quanto colocar o público em contato com o trabalho delas.

Cineclube Delas

Espaço feminista para reflexões acerca da figura do feminino no cinema, suas representações e significados, a fim de promover um debate, sob a perspectiva de gênero, sobre como os filmes desdobram questões pertinentes ao lugar das mulheres na sociedade.

FICINE

O Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE) tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

Coletivo Carne e Osso

O Coletivo Carne e Osso se propõe a produzir filmes feitos por mulheres e sobre mulheres, dando espaço para as estudantes experimentarem as diferentes áreas do audiovisual e se apoiarem em seus projetos. O nome do coletivo vem da personagem Angela Carne e Osso do filme “A mulher de todos” de Rogério Sganzerla, uma personagem marcante do cinema nacional por ser uma mulher insubmissa

Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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