“O poder público encara a política de transporte como neutra e não considera o recorte de gênero nem em seus estudos”

Por Natália Mazotte*

Crédito: Fábio Nazareth/ITDP Brasil

Maioria nos deslocamentos a pé e no uso do transporte coletivo, as mulheres têm uma vivência  privilegiada do espaço público e de seus equipamentos. Por essa razão, são as mais impactadas quando as políticas de mobilidade não funcionam. Partindo dessa conclusão, a diretora-executiva do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, na sigla em inglês), Clarisse Linke, critica a falta de estudos e levantamentos com recortes de gênero nessa área.

A organização dirigida por ela é referência na articulação com órgãos governamentais para incentivar um planejamento urbano mais humano e participativo. Entrevistada pela Gênero e Número, a especialista afirma que pensar o design das cidades e do transporte levando em conta a perspectiva das mulheres é um caminho para promover maior acesso à cidade, mas os planos de mobilidade municipais, obrigatórios desde a Lei 12.587 (Política Nacional de Mobilidade Urbana) ainda passam longe dessa discussão.

GÊNERO E NÚMERO – Você está atualmente engajada em algum projeto sobre mobilidade com recorte de gênero dentro do ITDP?

O ITDP já esteve envolvido em questões de mobilidade e gênero, mas não é o foco. Recentemente isso ganhou força novamente e recebemos um financiamento para fazer um projeto piloto na região metropolitana do Recife para entender o impacto do planejamento e da infraestrutura urbana para mulheres, com recorte de classe e raça. Queremos usar Recife como uma experiência piloto para ver o que conseguimos de dados para sair do discurso genérico.

Ainda são poucas as pesquisas no campo da mobilidade, com esse recorte específico. Por quê?

Sim, as coisas produzidas são muito pontuais. Um exemplo é o estudo da Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU), publicado em novembro passado, que olha para os dados da pesquisa Origem e Destino (OD) de São Paulo. Mas nem se compara com o que foi feito, por exemplo, em Viena, onde as mulheres foram entrevistas para participar, de fato, da construção da política pública. Não foi uma análise fria de dados quantitativos.

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O processo de elaboração da política de mobilidade deveria considerar que há, sim, diferentes padrões entre homens e mulheres. Mas hoje o poder público encara a política de transporte como neutra, então sequer levanta a perspectiva de gênero em seus estudos.

É como se mulheres e homens estivessem submetidos aos mesmos riscos e ao mesmo tipo de experiência. Isso não é verdade. O ITDP pretende fazer levantamentos para caracterizar melhor esses padrões diferentes de deslocamento por gênero, e buscar sensibilizar para que isso seja incorporado ao processo de tomada de decisão e de elaboração das políticas públicas. O caso de Viena e outros exemplos que consideraram as mulheres não apenas como usuárias ou clientes, mas as envolveram desde o começo da formulação das políticas, são nossas inspirações.

Dentro do que já foi pesquisado sobre isso, que diferenças fundamentais entre gêneros são observadas, na prática, e deveriam ser consideradas nas políticas públicas?

A principal é que a dinâmica de mobilidade do homem costuma ser mais pendular e linear, ele vai e volta da casa para o trabalho. A principal atividade dele diária é o trabalho produtivo, formal ou informal. O número de viagens dele, via de regra, é muito mais limitado. Já a mulher, em geral, faz não só o trabalho produtivo como também é majoritariamente responsável pelo trabalho reprodutivo. As mulheres têm um papel fundamental de cuidado, seja de idosos ou crianças. Então tendem a fazer viagens mais curtas e diversas, espalhadas durante o dia em horários diferentes.

Veja também: Maioria no transporte público, mulheres estão à margem das políticas de mobilidade

Ao levar essas diferenças em conta, que ações deveriam ser pensadas por quem formula as políticas de mobilidade?

Essas atividades relacionadas ao cuidado demandam mais viagens – se você vai do trabalho ao mercado e depois para casa, são duas viagens, porque são dois destinos. Então há viagens mais encadeadas e espalhadas no território. Do ponto de vista do planejamento de transporte, as integrações não nos beneficiam, são integrações temporais. A infraestrutura física e operacional dessa integração também não nos beneficia, porque não sabemos se, por exemplo, vamos sair do metrô e ter o ônibus em um horário certo para continuar o percurso, ou se teremos segurança no percurso a pé entre o metrô e o ônibus. Às vezes a integração é distante, é necessário caminhar um percurso mais longo, e se estamos com crianças, sacolas, como conseguir chegar a tempo para a segunda perna?

Portanto, um ponto são as integrações operacional, tarifária, física e de informações, que são péssima para todo mundo, mas para as mulheres causam um impacto maior, porque elas costumam fazer mais viagens. E para quem mora na periferia, isso é ainda pior. Se o sistema funciona bem, conseguimos cumprir melhor todas as tarefas que fazem parte do trabalho reprodutivo, infelizmente ainda essencialmente feminino.

Sobre a percepção de segurança das mulheres em seus deslocamentos, como isso afeta a utilização do transporte público por elas?

A questão da segurança afeta todo mundo, mas se estamos com crianças e idosos, somos alvos mais vulneráveis. A mulher mais pobre está no transporte público, mas assim que pode migra para o carro. Geralmente a mulher caminha mais e usa mais transporte público que o homem, mas assim que pode migra para o carro também, por uma questão de percepção de segurança e conveniência. A segurança é problemática não só dentro do sistema, do transporte público, mas também e principalmente no entorno do sistema. Se temos um ponto de ônibus ao lado de um terreno baldio, com uma iluminação muito falha, vamos nos sentir seguras para utilizá-lo? Quem planeja o transporte público, planeja só o corredor do sistema, não planeja a caminhada da pessoa até sua casa, que chamamos de last mile (última milha). E isso é fundamental pra fazer com que as pessoas desejem utilizar o transporte público e confiem nele. Não basta confiar no ônibus, é preciso confiar também nesses trajetos iniciais e finais, senão o carro se torna a saída, já que deixa na porta de casa. Não dá pra separar o planejamento urbano da questão da mobilidade.

Não há um risco de, quando pensamos no design das cidades, conformarmos esses estereótipos de gênero?

A questão da segurança afeta todo mundo, mas se estamos com crianças e idosos, somos alvos mais vulneráveis. A mulher mais pobre está no transporte público, mas assim que pode migra para o carro. Geralmente a mulher caminha mais e usa mais transporte público que o homem, mas assim que pode migra para o carro também, por uma questão de percepção de segurança e conveniência. A segurança é problemática não só dentro do sistema, do transporte público, mas também e principalmente no entorno do sistema. Sim, há um receio de conformar a divisão desigual do trabalho reprodutivo e desenhar uma cidade para que a mulher continue sendo a única responsável pelas tarefas de casa. Seria uma idiossincrasia.

Investir apenas no desenho da cidade não resolve. Há questões culturais e educacionais e isso precisa fazer parte de uma política mais ampla e de um desejo genuíno de construção de uma sociedade mais justa. Pensar o espaço da mulher nos locais de poder e de decisão, pensá-las com papel político real, não apenas protocolar. Como isso é tratado nas escolas? Nos lares? Mas, na prática, também não podemos ignorar as disparidades de gênero atuais. O vagão rosa é um exemplo micro nesse debate. Ele sozinho não resolve, ele segrega. Somos metade da população e temos um único vagão. Isso não resolve muita coisa. Por outro lado, a opinião de uma usuária da zona sul [área nobre do Rio de Janeiro] sobre ele é muito diferente da opinião de quem mora na periferia. Na rotina diária das mulheres que pegam o trem no horário de rush de uma ponta a outra, ter o vagão faz diferença. Não seria burguês demais as feministas da zona sul acharem um absurdo o vagão rosa?

Veja também: Polêmico de Recife a Porto Alegre, vagão rosa é aprovado por usuárias, mostram pesquisas

Os municípios atrasaram planos de mobilidade e Governo Federal ampliou o prazo para abril de 2018. Você tem visto esse debate ser considerado nesse período de formulação?

Não vi um plano até agora que mencionasse a palavra ‘gênero’. É fundamental os municípios terem dados. Ou origem-destino ou pesquisas menores dependendo do tamanho do município. Precisa entender onde as pessoas estão, para onde elas vão, dados de colisões e vítimas, só para dar alguns exemplos. Mas para isso você precisa ter um entendimento de que é essencial, e de que os municípios precisam produzir dados georreferenciados e territorializados. Quando mais detalhe, mais rico é o processo de planejamento.

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