Mulheres reprogramam o gênero dos cursos superiores de tecnologia no Brasil

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Pouco mais de 15% do total de ingressantes nos cursos na área de informática no país, elas peitam machismo de professores e colegas para se manter e avançar no mercado de TI

Por Bruna Nicolielo *

“Tem certeza que quer estudar nessa faculdade? Não sabemos se você consegue…” Foi assim que a família de Lucía Salamanca, 27 anos, reagiu à notícia da aprovação dela no curso superior em Design de Produto. O pai de Larissa Pereira Gambale, 22 anos, foi ainda mais direto. “Quando passei em Análise de Sistemas, ele não queria que eu seguisse essa área. ‘Você não vai trabalhar no meio de homens. Faça Administração'”. Na experiência das duas, indícios do impacto da pressão social na trajetória educacional de meninos e meninas e em suas escolhas futuras.

Quatro vezes mais garotos do que garotas planejam seguir uma carreira profissional em engenharia ou informática, de acordo com o relatório ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança”, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O estudo também mapeou as expectativas das famílias sobre sua cria: de maneira geral, mais pais esperam que seus filhos sigam uma profissão nessas áreas, mas não veem as filhas fazendo o mesmo. 

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É um caminho que para eles se apresenta como natural. Para elas, algo a ainda ser desbravado

— Bárbara Castro, pesquisadora

Não é de estranhar, portanto, que muito menos garotas do que garotos escolham estudar tecnologia ao fim do ensino médio. Elas são maioria no ensino superior, segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), mas sua preferência ainda recai sobre áreas voltadas ao cuidado, saúde e humanas.

De acordo com o Censo da Educação Superior de 2016, 82,1% dos cursistas de Enfermagem no país são mulheres, enquanto em Ciências da Computação elas somam apenas 13,3%. “A maneira como a sociedade pensa e define o que é ser mulher ou homem tem relação direta com o desenvolvimento das habilidades e competências de ambos”, diz Bárbara Castro, autora de uma pesquisa que investigou a presença feminina em TI (Tecnologia da Informação).

No estudo de Castro, todas as entrevistadas justificaram o interesse pela área na inspiração em alguém próximo que havia escolhido a carreira e lhes mostrado como ela poderia ser interessante. Já os homens, quando perguntados sobre como e quando se interessaram por TI, responderam que sempre gostaram de tecnologia e máquinas. “É um caminho que para eles se apresenta como natural. Para elas, algo a ainda ser desbravado”, explica a pesquisadora.

Professores e colegas carregam no machismo 

Quem consegue driblar a pressão social tem outros desafios pela frente, a começar pelo clima do meio acadêmico, marcado por formas sutis (ou não) de discriminação e segregação. Oscilando entre confraria para homens e clube do Bolinha, este tende a ser um campo de pouco acolhimento às mulheres e que valoriza atributos como competitividade, assertividade e rigidez. É o que a pesquisadora Simone Strumpf, da Universidade de Londres, na Inglaterra, chama de cultura “brogrammer”, um neologismo entre “brother” e “programmer”. “Trata-se de um espaço que exclui as mulheres através de normas que estabelecem o comportamento ‘masculino’, com uma linguagem sexista, por exemplo, e que reforçam os estereótipos”, ela explica.

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Uma vez, fiz uma pergunta ao professor sobre algoritmos. Um menino disse que, se estivesse tão difícil pra mim, que eu fosse fazer balé

— Lidiane de Paula, analista de sistemas

Esse ambiente pode ser antiquado e cruel, na definição da programadora Camilla Falconi, 29 anos. A maioria dos colegas dela no curso de Ciências da Computação já tinha feito curso técnico em informática, conhecia webdesign ou tinha tido acesso a códigos e exercícios de lógica previamente. “Sem a mesma experiência, você se sente incapaz e quer muitas vezes desistir”, diz ela.

Agressões sexistas disfarçadas de piadas fazem parte do pacote com o qual as meninas têm que lidar desde o primeiro dia de aula. “Uma vez, fiz uma pergunta ao professor sobre algoritmos. Um menino disse que, se estivesse tão difícil pra mim, que eu fosse fazer balé”, diz Lidiane de Paula, 30 anos, que estudou Sistemas de Informação. Juliana Neres, 21 anos, teve interesse em se inscrever em uma competição de matemática e programação com um grupo de amigas e ouviu de um colega da faculdade de Análise e Desenvolvimento de Sistemas: ‘Vocês querem competir com um time de meninas ou com um time que vai ganhar?’”. Já Clarissa Xavier, 40 anos, foi reprovada por um professor, junto com todas as estudantes da classe. “Ele disse: ‘mulher não devera fazer computação'”.

Também são comuns os relatos de alunas que são desconsideradas por seus pares e professores e excluídas de oportunidades, como bolsas de pesquisa. “Já passei por situações em que docentes (homens) me ignoraram em relação a dúvidas e a ideias que eu tinha sobre as matérias, mas para meus colegas estavam sempre disponíveis”, diz Sara Maria Gonçalves, 20 anos, que estuda Sistemas de Informação.

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Mulheres negras, como Gonçalves, sofrem duplamente. Além de masculino, o setor de tecnologia é quase exclusivamente branco. “As pessoas sempre perguntam se sou mesmo da área e se pretendo trabalhar com ‘esse cabelo'”, conta ela. A maior dificuldade é o ingresso e a permanência na universidade, que políticas públicas podem minimizar. “Quando estava para escolher o curso no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), pesquisei sobre informática e lá descobri o que era programação. Comecei a cursar o médio-técnico e aí me apaixonei mesmo”, continua Sara, que se interessa por ciência, mecânica e eletricidade desde a infância, por influência do pai, que é pedreiro.

Depois de circular por eventos da área e constatar que era uma das únicas mulheres negras, Silvana Bahia decidiu criar o PretaLab, rede que conecta essas profissionais. “Nunca achei que isso fosse para mim, mas aprender a programar me fez sentir capaz. Outras meninas precisam ser apoiadas”, conta ela. Ela cita alguns números que ajudam a dimensionar a ausência de mulheres negras neste setor: entre os quase 100 mil bolsistas da área de exatas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) só 5,5% é composto por negras. Já o Grupo de Gênero da Escola Politécnica da USP (Poligen) constatou em 2013 que, nos 120 anos anteriores, a instituição havia formado apenas dez mulheres negras.

Veja também: “Teto de vidro” na ciência: apenas 25% na categoria mais alta do CNPq são mulheres

A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) tem tentado reverter a tendência excludente no curso de Ciências da Computação. Uma das medidas é a flexibilização da grade curricular. Os dois primeiros anos são constituídos por disciplinas básicas, para garantir que alunos com diferentes habilidades tenham bom aproveitamento. Assim, quem não tem familiaridade com lógica ou vem sem conhecimentos prévios de cursos técnicos, não se sente excluído. A universidade também oferece apoio institucional a iniciativas como a PyLadies e o projeto de extensão universitária Emílias – Armação em Bits, apoiado pelo edital Meninas e Jovens Fazendo Ciências Exatas, Engenharias e Computação, do CNPq. O objetivo é aumentar a representatividade das mulheres na área, desconstruindo estereótipos, dando informação para futuras estudantes e motivando as que já estão inseridas no ensino superior. “Este campo profissional não tem nada a ver com a imagem antiga que o associava a pessoas estranhas, antissociais, fechadas numa salinha. É um campo para gente criativa. Temos a chance de mudar essa visão, mas é preciso paciência”, diz Sílvia Amélia Bim, professora da UTFPR e uma das coordenadoras do Emílias.

Diversidade importa

A implicação mais óbvia dessas adversidades é a baixa participação de mulheres no setor de TI. Dos mais de 580 mil profissionais que atuavam no Brasil em 2009, apenas 20% eram mulheres, segundo levantamento de Bárbara Castro a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE. Por isso, a participação feminina em cursos de tecnologia é, simultaneamente, essencial para combater a naturalização dos estereótipos e estimular ambientes de trabalho mais diversos, e uma necessidade para o desenvolvimento do país. Um estudo da consultoria estratégica McKinsey, que vem examinando a diversidade no local de trabalho há vários anos, analisou dados de empresas de diferentes segmentos, em Canadá, América Latina, Reino Unido e Estados Unidos. A conclusão: organizações com diversidade de gênero e de etnia têm retorno financeiro acima da média nacional.

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Hoje, temos recursos que não compreendem totalmente a diversidade do seu público consumidor, e que podem, inclusive, deixar as mulheres mais vulneráveis à questões de segurança e privacidade

— Karen Figueiredo, professora

Hoje, o número de profissionais formados em áreas tecnológicas não atende à demanda crescente das empresas, cada vez mais informatizadas. “O Brasil ainda tem carência de profissionais. A presença das mulheres ampliará a força de trabalho necessária para nosso desenvolvimento”, diz Nanci Stancki da Luz, coordenadora do Núcleo de Gênero e Tecnologia (GETEC) da UTFPR. O estudo “Networking Skills in Latin America”, encomendado pela Cisco à consultoria especializada IDC, estima que o déficit de mão de obra qualificada em TI até 2019 será de 449 mil profissionais. O setor deve crescer 2,5% em 2017, segundo estimativas da mesma IDC.

Uma participação mais massiva das mulheres também traria novos olhares e percepções, já que elas se apropriariam da tecnologia como produtoras e não apenas consumidoras, como acontece com mais frequência atualmente. “Hoje, temos recursos que não compreendem totalmente a diversidade do seu público consumidor, e que podem, inclusive, deixar as mulheres mais vulneráveis à questões de segurança e privacidade”, explica Karen Figueiredo, professora do Instituto de Computação da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso).

Bruna Nicolielo é jornalista.

Esta reportagem é uma parceria de produção jornalística entre Gênero e Número e a Programaria.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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