Luzia Valentim e Graziela dividem a guarda de Hael, filho biológico de uma mulher trans e uma mulher cis. | Foto: Arquivo pessoal

Fora da “família tradicional”, população trans não tem saúde reprodutiva garantida pelo SUS

Processo transexualizador pode afetar a possibilidade reprodutiva, o que faz com que pessoas trans tenham que escolher entre iniciar a transição ou ter filhos biológicos; pesquisadora fala em “esterilização simbólica” para designar a falta de atenção aos desejos e às experiências da população trans em relação à reprodução

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Foi no meio de sua transição de gênero que Luiza Valentim, uma mulher trans de 27 anos, descobriu que poderia ficar estéril devido ao processo transexualizador. Ela, que começou a transição de gênero em 2013 no SUS (Sistema Único de Saúde), conta que ficou angustiada quando descobriu que os hormônios poderiam deixá-la infértil. “Na época, era bem forte a questão de que eu teria que escolher entre passar pela transição de gênero e ter um filho. Eu queria ter um filho, não apenas para cuidar de uma criança, mas porque queria focar em uma construção familiar, o que é negado às pessoas trans”, disse à Gênero e Número.

Valentim então decidiu ter um filho com sua melhor amiga Graziele, uma mulher cisgênero que também queria ser mãe. Como estava no início da terapia hormonal, não precisou adiar tanto o processo transexualizador, já que Graziele engravidou rapidamente. “Ter uma criança foi um divisor de águas. Ter um filho foi um privilégio que sei que muitas pessoas trans não vão ter a oportunidade que tive”, disse ela. Em 2015, nasceu seu filho Hael e as duas mães hoje dividem a guarda da criança no município de Serra do Cipó, em Minas Gerais.

A história de Luiza Valentim exemplifica as barreiras ao direito à reprodução e à parentalidade enfrentadas por pessoas trans que passam pelo processo transexualizador. A terapia hormonal pode afetar a possibilidade reprodutiva, mas não é algo definitivo, como é a cirurgia de redesignação sexual. Isso que faz com que, para algumas pessoas, a reprodução seja determinante na escolha do momento do processo transexualizador.

“Se para mulheres cis a maternidade aparece como imperativo, condição supostamente importante para sua feminilidade e realização como mulher, para as mulheres trans a maternidade pode se constituir como proibição, parecendo haver uma ausência, um silenciamento em relação ao tema, um interdito”, disse à Gênero e Número Mônica Angonese, mestre em Psicologia pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). “Para homens trans, a reprodução em alguns momentos ainda se mostra imperativa, naquela ideia de que o corpo dito feminino seria regulado por supostos instintos naturais” de reprodução, avalia.

Segundo a ginecologista Camila Toffoli, do ambulatório para trans e travestis de Uberlândia (MG), instalado no Hospital das Clínicas da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), “uma pessoa trans tem os mesmos direitos que qualquer pessoa à contracepção e concepção, mas o que vemos é que pouquíssimos centros promovem o acesso a direitos reprodutivos pelo SUS”.

 

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Entre 2008 e  junho de 2018, ao todo, foram feitos 262 procedimentos hospitalares e 29.975 procedimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador no país. Pelo SUS, foram 18 cirurgias de redesignação de sexo para mulheres trans em 2017, em comparação com 23 no ano anterior. Para os homens trans, em 2017 foram 11 cirurgias de remoção de útero e ovários, a histerectomia, em relação a apenas duas em 2016. Os procedimentos hormonais passaram de 159 para 1.295 e as consultas ambulatoriais foram de 388 para 1.344 no mesmo período, segundo dados do Datasus. Este aumento pode ser creditado ao estabelecimento de quatro novos serviços para procedimentos ambulatoriais de processo transexualizador em São Paulo, Curitiba (PR), Rio de Janeiro e Uberlândia (MG) entre 2016 e 2017.

O processo transexualizador foi estabelecido no SUS em 2008, a partir da portaria 457 do Ministério da Saúde que buscava a habilitação de serviços em hospitais universitários e a realização de procedimentos hospitalares. Com a demanda da ampliação do atendimento especializado a pessoas transexuais e travestis, em 2013 foi publicada a portaria nº 859 com o objetivo de estruturar a atenção à saúde dessa população, que depois foi substituída pela portaria nº 2.803, que redefiniu e ampliou o processo transexualizador no SUS.

Dez anos depois da primeira Portaria, há apenas nove centros habilitados pelo SUS para oferecer estes procedimentos, que incluem terapia hormonal, acompanhamento psicológico e acompanhamento dos usuários em consultas e no pré e pós-operatório. Eles estão nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Sul. Dos nove centros, cinco oferecem a cirurgia de redesignação sexual. Há, no entanto, atendimentos ambulatoriais a pessoas trans em hospitais de outras capitais.

Para passar pelo processo, o Ministério da Saúde exige que antes da cirurgia seja feito um acompanhamento multidisciplinar por pelo menos dois anos. Para todos  os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos e para procedimentos cirúrgicos, 21. Após a cirurgia, deve ser feito acompanhamento por mais um ano.

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Esterilização simbólica

Apesar da criação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT em 2010, ainda há um longo caminho a se percorrer para a implementação, garantia e consolidação de direitos da população LGBT+ no Brasil. As experiências reprodutivas da população trans, por exemplo, são negligenciadas e relegadas à invisibilidade, avalia Angonese. “Direitos e saúde reprodutiva costumam ser associados exclusivamente a corpos cisgêneros e à heteronormatividade, no contexto de um modelo familiar tradicional. Ainda que seja mais recorrente hoje a discussão sobre homoparentalidades, as vivências de parentalidade por pessoas trans seriam ainda mais ininteligíveis, impensáveis e repudiadas, pois a constituição de família não é avaliada como saudável quando relacionada à transexualidade.”

A pesquisadora, que em sua dissertação de mestrado estudou saúde reprodutiva e parentalidade trans, propõe o termo “esterilização simbólica” para designar a esterilidade pressuposta de pessoas trans, resultado da falta de atenção aos desejos e às experiências da população trans em relação à reprodução: “A ideia remete à impossibilidade de escolha pela reprodução e de exercer a parentalidade, seja esta biológica, por processo de adoção ou na função de cuidado, interdito este associado ao lugar de abjeção – como teoriza a filósofa feminista Judith Butler – a que são submetidos os corpos trans”, explica Angonese.  

Leonardo Peçanha, professor de educação física, homem trans e pesquisador de gênero e sexualidade, concorda. “O debate sobre direitos reprodutivos é muito pequeno ainda. Estamos começando a falar mais sobre isso agora. Quando se falava da saúde da pessoa trans, era sempre muito vinculada ao processo transexualizador”, comenta. Ele estuda especificamente a experiência de homens trans com a gestação e observa que o senso comum é de que as pessoas trans só demandam acesso à saúde dentro do processo transexualizador. “Nós temos condições de saúde como qualquer ser humano e isso deveria ser assegurado. As famílias que são construídas por pessoas trans estão aparecendo e as demandas ficando cada vez mais em evidência, então espero que essa discussão continue caminhando.”

As últimas conquistas do movimento trans, como a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de que não é necessário laudo ou cirurgia para a retificação de nome e gênero no registro civil e a saída da transexualidade da lista de transtornos mentais da Organização Mundial de Saúde (OMS), tornaram, segundo Peçanha, a portaria do processo transexualizador defasada e desatualizada, sendo necessário que haja um ajuste das demandas da população trans na saúde.

 

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Para Leonardo Peçanha, pesquisador de gênero e sexualidade, a portaria do processo transexualizador defasada e desatualizada e precisa garantir os direitos reprodutivos das pessoas trans. Foto: Paula Jonas

Nesse sentido, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) recorreu à Defensoria Pública da União (DPU) solicitando interlocução junto ao Ministério da Saúde para adequação do SUS para atendimento adequado à população trans no sistema público de saúde. A associação sustenta que, com a retificação de nome e gênero no registro civil, as pessoas trans podem perder o direito à saúde de forma integral, já que alguns procedimentos no SUS estão restritos a determinados gêneros a partir de sua identificação com determinados órgãos genitais.

“Especialidades médicas como a urologia, proctologia e a ginecologia ainda seguem condicionadas ao ‘sexo’ genital”, afirmou em nota a ABGLT. “Isso significa dizer que travestis, mulheres transexuais e homens trans não conseguem marcar consultas e realizar procedimentos necessários, mesmo com o nome e ‘sexo’ retificado, por conta dessa incongruência do sistema. Um exemplo é de que hoje o SUS compreende que certos serviços, como os de ginecologia, só podem ser ofertados para ‘mulheres’”.

A DPU interpelou o Ministério da Saúde no dia 19 de julho e deu um prazo de vinte dias para a pasta responder. Segundo a DPU, o MS não se manifestou quanto às recomendações e a defensoria estuda quais medidas serão adotadas. A Gênero e Número contatou o Ministério sobre essa questão, que respondeu  que vem aperfeiçoando os sistemas de informação em saúde sensíveis às demandas e especificidades da população LGBT e para atender as recomendações propostas pela DPU, a pasta reuniu as Coordenações -Gerais da Secretaria de Atenção à Saúde-SAS com o Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social-DAGEP, responsável pela Política Nacional de Saúde Integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (PNSILGBT), “para elencar todos os sistemas que geram críticas referente ao ‘sexo’ e definir as alterações necessárias”. Segundo o Ministério, “o próximo passo será a articulação interna com o DATASUS,  área de tecnologia, para efetivar as críticas nos sistemas de informação de forma a atender todas as recomendações”.

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Parentalidade trans

O estudante de ciências sociais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Guilherme Leoni de Paula é um homem trans de 21 anos, que teve sua filha, Selena, aos 16 anos. Foi uma gravidez não planejada do jovem, que já morava sozinho desde os 14 anos, quando começou seu processo de transição de gênero. A gestação veio antes da terapia hormonal, já que ele começou o acompanhamento do processo transexualizador do SUS há de dois anos.

De Paula conta que sua família questiona a criação da sua filha por ser um homens trans, mas que busca se cercar de amigos que respeitem sua identidade de gênero e sua parentalidade. Ao procurar creches para Selena, comenta que já sofreu transfobia relacionada ao desrespeito ao seu nome e gênero. “Minha filha não tem nenhum problema em ser criada por uma pessoa trans. Quem não foi criado perto de pessoas trans é que acha diferente”, disse ele à Gênero e Número.

Guilherme Leoni de Paula engravidou de sua filha aos 16 anos e ainda sofre com questionamentos de sua parentalidade por ser um homens trans. Foto: Reprodução

Luiza Valentim também diz passar por estes mesmos questionamentos em relação a sua parentalidade. “Vejo nos olhos o questionamento da sociedade sobre se eu dou conta de criar meu filho, só por ser trans. Sinto que existe essa cobrança maior, por não me encaixar no padrão da sociedade do que é uma ‘mãe de família’.” Para ela, é importante pautar também o direito familiar de uma pessoa trans criar e educar uma criança. “Não é só o direito reprodutivo, mas o direito de poder educar e criar um filho, mesmo porque a transfobia nos coloca no lugar de pessoas hipersexualizadas que não podem se relacionar com crianças.”

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Congelamento dos gametas e reprodução assistida como uma opção

A garantia dos direitos reprodutivos é uma das diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pelo Ministério da Saúde em 2010. De acordo com o documento, o Estado deve garantir “os direitos sexuais e reprodutivos e o respeito ao direito à intimidade e à individualidade” de pessoas LGBT+ e é responsabilidade do Ministério da Saúde definir estratégias de serviços para a garantia dos direitos reprodutivos da população LGBT+.

Além disso, a cartilha de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Trans do SUS informa que as cirurgias de redesignação sexual são esterilizantes e que cabe ao profissional de saúde “esclarecer àqueles(as) que desejam submeter-se à cirurgia acerca deste efeito, bem como, na medida do possível, informar quanto aos recursos disponíveis para conservação de óvulos ou esperma, caso seja da vontade do(a) usuário(a) fazê-lo com vistas à reprodução assistida”.

Apesar de ser notada na cartilha do SUS de atenção à saúde das pessoas trans, na portaria do processo transexualizador não consta a possibilidade de congelamento de óvulos ou esperma e reprodução assistida. “A luta agora é colocar outras demandas no processo transexualizador que antes não tinham, como a questão do direito reprodutivo entendendo que pessoas trans deveriam ter a possibilidade de congelar seu material genético para posteriormente ser usado para reprodução”, disse Peçanha.

Para o pesquisador, é necessário promover um diálogo com quem vai atualizar a portaria para que ela seja feita de maneira inclusiva ,“levando em conta a gestação de homens trans, que mulheres trans podem ser mães biológicas e novas constituições familiares. Isso precisa estar explícito na portaria, porque sabemos que não estar é uma maneira de não assegurar direitos.”

Para a ginecologista Camila Toffoli, especialista em fertilidade, o congelamento de óvulos, sêmen ou até mesmo o embrião deveria ser assegurado pelo SUS e oferecido como uma possibilidade antes de começar o processo transexualizador. Ela conta que o ambulatório da UFU luta há um ano para liberação da verba para criar uma clínica de reprodução assistida. Seriam necessários R$ 2 milhões para o laboratório garantir os direitos reprodutivos da população trans. Até agora, não conseguiu.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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