Maioria no transporte público, mulheres estão à margem das políticas de mobilidade

Por Mariana Bastos*

  • Elas são 80% das usuárias de ônibus

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  • Transporte bom para mulheres, bom para todos

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A esmagadora maioria dos cargos públicos e de autarquias de primeiro escalão relacionados a transporte e mobilidade no Brasil é ocupada por homens. Entre as 34 lideranças de secretarias municipais e autarquias das capitais cujas responsabilidades estão associadas à mobilidade urbana, há somente cinco mulheres, menos de 15% do total.

O levantamento da Gênero e Número junto aos órgãos municipais foi feito entre fevereiro e março de 2017 e revela uma falta de representatividade feminina que, segundo especialistas, contribui para que as vias e os coletivos sejam bem menos acolhedores às mulheres do que poderiam ser.

Veja também: Base de dados – Mulheres nas secretarias e autarquias de transporte das capitais

“Onde aparecem as mulheres nesses órgãos? Normalmente nas áreas de marketing e de educação, diretorias consideradas “femininas”. Já os homens tendem a ocupar quase 100% das áreas de planejamento e estrutura. Isso é um reflexo do fato de que a Engenharia ainda é um campo majoritariamente masculino”, acrescenta Vuolo, que também é representante do projeto “Cidade dos Sonhos”, uma plataforma apartidária que busca estabelecer uma ponte entre os desejos da população no campo da sustentabilidade e o poder público”.

O reflexo do domínio dos homens nas tomadas de decisões públicas voltadas para a mobilidade se faz sentir no dia a dia das mulheres, as principais usuárias do sistema público de transporte, de acordo com pesquisas da área.

Segundo um levantamento feito pela pesquisadora Haydée Svab em sua dissertação de mestrado “Evolução dos padrões de deslocamento da região metropolitana de São Paulo”, historicamente as mulheres são a maioria entre os usuários de ônibus. De metrô, passaram a ser maior parte a partir de 1997. Outra constatação é a de que as mulheres fazem mais deslocamentos a pé do que homens. Aliás, a tese também constatou que a forma de deslocamento mais comum de mulheres no espaço público é justamente a pé.

“Políticas municipais focadas em tornar a cidade mais caminhável e que priorize os ônibus, serão políticas que avançam no caminho da equidade de gênero”, afirma a pesquisadora.

A Pesquisa de Mobilidade da região metropolitana de São Paulo, conduzida pelo Metrô, chegou a constatações similares. Pouco mais de 34% das mulheres se deslocam a pé pela cidade, contra 28% dos homens. Os trajetos curtos feitos pelas mulheres ajudam a explicar a preferência por esse tipo de deslocamento.

“As mulheres têm motivos de deslocamento muito mais diversificados: ir ao supermercado, levar o filho ao médico, pegar o filho na escola, cuidados relacionados à casa.”, afirma Tomás Wissenbach, secretário municipal de Desenvolvimento Urbano de SP.

A mesma pesquisa atesta que o percentual de homens que se desloca como motoristas em transporte individual é de 26%, contra apenas 14% de mulheres. Não à toa, a mobilidade urbana no Brasil tende a privilegiar os carros, usados na maioria por homens, em detrimento das vias para pedestres, ocupadas mais por mulheres.

“Há um pacto social que valoriza as funções produtivas de tal forma que as coloca acima das reprodutivas e de cuidado. Assim, tudo refletirá esse pacto: o desenho das calçadas onde sobram guias rebaixadas para carros e faltam rampas de acessibilidade, a rua que é literalmente palco de disputa entre modos individuais e coletivos”, afirma Svab.

Em São Paulo, foi necessária a presença de uma mulher em um cargo de segundo escalão na secretaria para que o tema da mobilidade começasse a ser pautado por um recorte de gênero.

“A nossa chefe de gabinete era muito ligada à pauta feminista. Ela provocou ao questionar o fato de o planejamento urbano não trazer essa perspectiva de gênero na sua formulação”, diz Wissenbach.

Foi só a partir dessa provocação que a secretaria se debruçou sobre estatísticas para saber se havia diferenças significativas nos padrões de deslocamento entre homens e mulheres. “Os dados são muito claros. É raro, quem trabalha com estatística, perceber com tanta nitidez essa diferença de padrão”, afirma.

A constatação dessa diferença por enquanto ainda não se traduziu em ações específicas para melhorar a mobilidade das mulheres em São Paulo. Segundo o secretário, isso ainda não ocorreu pela troca ainda muito recente de gestão.

Elas são 80% das usuárias de ônibus

Em Minas Gerais, há constatações semelhantes sobre o uso preferencial de mulheres pelo transporte público. O estado inclusive conta com uma Secretaria de Transportes que possui uma distribuição um pouco menos desigual de cargos entre homens e mulheres. Mais de um em cada três dos cargos de segundo escalão (chefe de gabinete, subsecretários, diretores e superintendentes) são ocupados por mulheres.

“O nosso transporte metropolitano é usado majoritariamente por mulheres. Elas correspondem a 80% dos usuários dos ônibus. O sistema é totalmente brutalizado. É uma cultura que não se muda de forma tão simples. Mas ainda não fizemos nada específico para as mulheres”, admite Maílla Soares, Superintendente de Transporte Metropolitano. “Precisamos pensar nisso. Vamos planejar algo para esse ano.”

Belo Horizonte é uma das cidades brasileiras em que é possível, de acordo com a lei, fazer com que o ônibus pare fora do ponto depois das 22h para assegurar a segurança da mulher que não deseja percorrer trechos escuros para chegar em casa. Entretanto, a informação é pouco disseminada. “Tem motorista que não sabe disso. Temos que divulgar”, admite Maílla.

Maílla ressalta, no entanto, que tem procurado escutar as demandas dos usuários. Segundo ela, a maioria das interlocutoras são mulheres.

Para Haydée este é o caminho ideal para se construir políticas públicas de transporte levando-se em consideração a perspectiva de gênero.

“Pode-se pensar pelo caminho de promover mais mulheres nos espaços de tomada de decisão, mas só isso não resolve. Na minha opinião, a chave está no desenvolvimento e adoção de metodologias participativas de formulação de políticas públicas”, explica. “Porque assim, poderia se dar oportunidade para a mulher negra periférica, a mulher branca de classe média, a transexual, o idoso com mobilidade reduzida e a criança que vai à escola, entre tantos outros perfis, expressarem suas demandas a partir de suas vivências, influenciando as decisões”

São Paulo fez uma tentativa no ano passado de tornar pelo menos o Conselho de Transporte e Trânsito um espaço mais igualitário. A lei de paridade de gênero obrigou o Conselho a ter um número de cadeiras iguais entre homens e mulheres. Após algumas tentativas de manobras para que homens não perdessem suas cadeiras, o conselho por fim assumiu uma composição igualitária em outubro do ano passado.

Transporte bom para mulheres, bom para todos

O Brasil ainda caminha muito timidamente na reflexão sobre a inclusão do recorte de gênero nas políticas de mobilidade. Em termos práticos, as iniciativas que mais chamam a atenção são o polêmico vagão rosa e a possibilidade de descer fora do ponto em poucas cidades, que só passaram a incluir essa iniciativa nos últimos cinco anos. Ainda que seja algo festejado por mulheres e com custo baixo de adoção, essa prática ainda não é adotada massivamente nas cidades.

Ações que garantam a segurança e o conforto das usuárias de transporte público a partir do encorajamento das denúncias são iniciativas raras nas grandes cidades. Para especialistas, é urgente que se criem políticas públicas de mobilidade pensadas para mulheres porque, nestes casos, sempre quem ganha é a coletividade.

“No contexto social atual, é imputado principalmente às mulheres as atividades do cuidado com filhos ou idosos. Logo, atualmente, pensar uma mobilidade dos corpos que são cuidados por mulheres é também pensar em mobilidade com recorte de gênero. Mobilidade com recorte de gênero também beneficia uma mobilidade que podemos chamar de ‘democrática’. Ou seja, pensar questões específicas, por exemplo, para mães se locomoverem com carrinhos de bebês, pode trazer desenhos urbanos que facilitem também a vida de pessoas cadeirantes, e vice-versa” aponta Haydée.

Mariana Bastos é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Colaboração de Patrícia Gomes Lima

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