Foto: Linh H. Nguyen / Flickr

Em relatos por telefone, violências física, psicológica e moral somam mais de 80% dos casos em anos recentes

Antropóloga afirma que os números compilados do serviço, instalado há 10 anos para dar suporte à Lei Maria da Penha, dão força às demandas das mulheres e mostram a ponta de um iceberg

Por Patrícia Gomes*

Maria Lutterbach

  • Da guarda dos filhos ao pedido de ajuda

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  • Percepção da violência

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  • Não há dia nem idade para a agressão

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O telefone toca. Do lado de lá, um pedido de ajuda urgente. “Alô. Estamos com uma mulher toda machucada aqui no hospital. Ela está grávida e disse que, após agredi-la bastante, o companheiro ameaçou esquartejá-la e encaminhar as partes do seu corpo em sacos de lixo para seus familiares.” Do lado de cá, uma atendente do Disque 180 ouve o relato, faz perguntas sobre a vítima, o agressor, o tipo e a frequência da violência, dá informações. Como este, só de janeiro a junho de 2016, foram mais de meio milhão de atendimentos realizados pelo 180, uma média de mais de 3 mil registros por dia. Ao ser lançado, no fim de 2005, o serviço prestava uma média de 4 mil atendimentos por mês. Com uma demanda crescente, de lá para cá, já foram registrados mais de 5,3 milhões de atendimentos.

“Os números dão força às demandas das mulheres. Eles mostram a ponta de um iceberg e para de parecer que essas denúncias são histeria do movimento feminista”, afirma a antropóloga Natália Nuñez, autora do artigo “A Escuta da Violência: etnografia no Disque 180 da Secretaria de Política para as Mulheres”.

Os atendimentos, compilados e categorizados desde que o serviço foi criado, têm se mostrado importante recurso no desenvolvimento de políticas públicas de proteção às mulheres vítimas de violência. “O 180 foi criado primordialmente para dar apoio à Lei Maria da Penha [que tem foco na violência doméstica]. A mulher que é vítima é acolhida e encaminhada a um serviço especializado. Esses números ajudam a evidenciar o problema e construir políticas públicas adequadas”, diz a secretária Nacional do Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, Sílvia Rita Souza.

Veja também: Quando não mata, violência doméstica deixa marcas e uma dura batalha judicial para as mulheres

Em 2013, por exemplo, o governo federal lançou o Mulher Viver sem Violência. O programa usava os balanços do 180 para orientar a integração e a humanização dos serviços que compõem a rede de apoio à mulher, além de justificar a criação da Casa da Mulher Brasileira –centro que oferece em um só lugar o espaço para acolhimento e triagem, apoio psicossocial, delegacia, juizados, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros serviços.

A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ao qual o 180 é ligado, no entanto, recomenda cautela na análise dos atendimentos ao longo do ano. “O aumento do número de atendimentos e de relatos de violência não indica necessariamente que houve aumento dos casos de violência contra as mulheres, mas que mais pessoas buscam o serviço para relatar ou denunciar essas situações”, afirma a pasta.

Da guarda dos filhos ao pedido de ajuda

As denunciantes, majoritariamente mulheres, recorrem ao serviço pelos mais diferentes motivos. Querem, entre muitas outras coisas, saber se têm chance de perder a guarda dos filhos caso traiam seus companheiros, tirar dúvidas sobre bens e divórcio. Querem saber onde fica a delegacia da mulher mais próxima ou onde tomar a pílula do dia seguinte. Querem denunciar abusos sofridos por elas mesmas ou por pessoas que amam. Querem pedir ajuda.

No primeiro semestre deste ano, o 180 recebeu quase 68 mil desses pedidos de ajuda, chamados oficialmente de “relatos de violência contra a mulher”, um dos tipos de chamadas atendidas pelo 180 –correspondem a 12% do total. Em 2015 inteiro, foram 76 mil registros. Embora esse número tenha atingido seu pico em 2010, com quase 110 mil relatos, uma comparação entre os dados de 2006 e 2015 revela que nos últimos dez anos houve um aumento de 437% na quantidade de atendimentos deste tipo feito pelo 180. Além desses, os atendimentos do 180 também incluem a prestação de informações, serviços de telefonia e encaminhamentos para a rede de atendimento à mulher em situação de violência.

 

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Os balanços do 180 atualmente subdividem relatos de violência contra a mulher em violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial, cárcere privado e tráfico de pessoas. Apesar de ter havido um aumento generalizado em números absolutos desses relatos, alguns tipos vêm crescendo mais do que outros em termos relativos.

De 2014 para 2015 foram cerca de 45% a mais relatos de violência contra a mulher. Cresceram acima dessa média os relatos de cárcere privado, tráfico de pessoas, violência sexual e patrimonial.

Percepção da violência

Para Souza, os números de mais de uma década de atendimento servem ainda para mostrar que o que a mulher entende como violência tem mudado com o tempo. “Na medida em que a sociedade avança na percepção da violência, a tendência é a gente aumentar também a coleta desses dados”, afirma.

Tome-se o caso das violências sexuais como exemplo, que aumentaram 123% na comparação do primeiro semestre deste ano com o mesmo período do ano passado. Ao todo, foram 18.000 atendimentos telefônicos a mais. No ano anterior, de 2014 para 2015, esses números também mais que dobraram, registrando um aumento de 129% no total do ano. Dentro das violências sexuais, que incluem exploração sexual, assédio e estupro, são os estupros que têm puxado a alta.

Será que esses aumentos galopantes nos relatos de violência sexual aumentaram porque houve mais casos ou porque a mulher está ampliando sua concepção do que isso significa? Quem responde essa pergunta é Cristiana Bento, delegada titular da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV), no Rio, e que já esteve à frente de delegacias da mulher em Duque de Caxias e São Gonçalo.

“Não foram os casos de estupro que aumentaram, foi o empoderamento da mulher que aumentou. A mulher agora percebe que o que acontecia com ela em casa, com o companheiro, ou na rua era estupro e pede ajuda”, afirma a delegada, que ganhou notoriedade em julho, ao assumir e dar uma guinada no caso do estupro coletivo de uma adolescente no morro da Barão, da Praça Seca, zona oeste do Rio.

Os números crescentes mostram que a mulher está falando mais a respeito e que o processo de mudança está em curso. “O 180 abriu um canal de escuta e diálogo, facilitou o acesso à informação, sobretudo da população mais desassistida”, afirma Nuñez, a antropóloga. “A desconstrução do machismo leva tempo. E política pública não se constrói de cima para baixo”, diz a secretária Souza.

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A ampliação do conceito de violência vem se tornando tão importante que a SPM estuda aumentar o rol de violências identificadas no questionário do 180 em breve – atualmente são sete classificações de violência. “Agora temos percebido outros tipos de menção à violência. Nós vemos a cibernética, a chamada pornografia da vingança, a injúria racial na internet – que atinge sobretudo mulheres negras –, a violência obstétrica, a ampliação do conceito de assédio – como o encoxamento no transporte público –, os estupros coletivos, a violência política”, enumera a secretária.

De todos esses novos tipos, os que Bento vê com mais frequência em sua delegacia são os crimes relacionados à honra na internet e a pornografia de revanche, que é quando um casal termina o relacionamento e um deles, normalmente o homem, dissemina fotos íntimas da companheira na rede. “Quando fotos íntimas de um casal vazam, as pessoas recriminam a mulher, que é a vítima. Essa é mais uma forma de machismo na sociedade”, avalia a delegada.

As consequências, continua Bento, são gravíssimas, e podem levar a vítima, inclusive, a cometer suicídio. Tal realidade é ainda mais perversa quando essa a violação de privacidade envolve adolescentes. “A internet e o celular tornaram tudo muito fácil. Quando um caso desses acontece, a adolescente tem que lidar com a sociedade e com os pais.”

Não há dia nem idade para a agressão

Os relatos também mostram que a violência não escolhe classe social, raça ou idade. Há casos para todas as faixas etárias, e em muitos deles as atitudes agressivas são julgadas como arroubos de um “homem bom”. Bento se lembra de um caso envolvendo um casal de idosos, ambos na casa dos 80 anos, enquanto ela estava à frente da delegacia da mulher de Duque de Caxias. “‘Ele é um bom marido. Só me maltrata quando bebe’, ela me dizia. Eu perguntei: ‘e quando ele bebe?’, ‘Todos os dias’,” conta a delegada.

Sim, todos os dias. Dos relatos de violência contra a mulher registrados neste ano pelo serviço, quase 40% foram descritos como episódios diários. “Para a mulher, é difícil denunciar o parceiro, têm filhos juntos, estão juntos há muitos anos”, pondera a secretária. Em 40% dos casos relatados neste ano, as mulheres mantinham um relacionamento de mais de 10 anos com o agressor.

Além da frequência da violência, o questionário do 180 também procura capturar se ainda há outras pessoas expostas a essa violência. Os dados mais recentes divulgados pela SPM mostram que os filhos das vítimas presenciaram ou também foram vítimas da violência em 83% dos casos.

“Além dos traumas e sofrimentos vivenciados, aos poucos, [os filhos] familiarizam-se com a agressividade nas relações interpessoais, com a opressão das mulheres. A violência passa a ser uma referência de expressão, ampliando as possibilidades de reprodução dessas violências”, avaliou a SPM no balanço do primeiro semestre de 2013.

Veja também: “Muitas mulheres buscam primeiro a proteção do Estado, não a prisão dos agressores, e o Estado ainda não consegue responder a todas”

 

A conexão da violência que grita com a violência que cala

Os dois tipos de relatos mais frequentes de violência, a física e a psicológica, respondem a cerca de 80% dos atendimentos do 180. Apesar de não haver dados disponíveis nos anos iniciais do serviço, a SPM afirma que relatos de violência física respondem a mais da metade dos atendimentos desde 2006. A violência psicológica vem, ao menos desde 2012, representando cerca de 30% dos casos.

Apesar de terem dinâmicas diferentes –enquanto a primeira deixa marcas visíveis na vítima, a segunda é mais silenciosa–, frequentemente uma está acompanhada da outra. “É uma escadinha. A mulher suporta a agressão psicológica por muito tempo e acaba procurando a delegacia quando a violência física acontece”, afirma a delegada Bento a partir de suas observações de quando esteve à frente de delegacias da mulher.

O que a violência psicológica tem de comum, ela também tem de perigosa. Esse tipo de violência, assume a secretária Souza, é mais difícil de provar e prestar assistência. As suas consequências não são tão visíveis quanto a de uma agressão física e normalmente ocorrem inúmeras vezes até que a situação se torne insustentável e a mulher busque ajuda. Relatos de violência psicológica são encaminhadas aos 238 centros de referência de atendimento à mulher espalhados pelo país. Presentes em todos os estados brasileiros, essas entidades têm psicólogos e assistentes sociais capacitados a dar esse tipo de apoio.

Patrícia Gomes é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Maria Lutterbach

Diretora da Filmes da Fonte, produtora de filmes de impacto com foco em temas de gênero e direitos. Roteirista do média “Verde-Esperanza”, licenciado para o Curta! Autora do romance “Baixo Araguaia”.

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