Número de registros ainda não reflete a realidade, mas campanhas pretendem encorajar denúncia e diminuir prática | Foto: Não é Não / Divulgação

Lei de importunação sexual faz disparar registros no Carnaval do Rio, mas subnotificação ainda preocupa

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Estado registrou 27 casos de assédio ou importunação sexual durante o último Carnaval, e somente 7 entre 2015 e 2018, durante a festa; campanhas visam encorajar denúncia e diminuir prática

Por Lola Ferreira e Flávia Bozza Martins*

Maria** caminhava por volta das 18h de uma terça-feira de Carnaval, no centro do Rio de Janeiro, quando um homem desconhecido a beijou, de surpresa. Ela se desvencilhou, gritou pelos amigos, mas quando olhou de volta o agressor já tinha sumido na multidão. Joana** estava tocando xiquerê em um bloco em Santa Teresa, na mesma região, quando um homem desconhecido apertou sua bunda. E, assim como ela, os dias de Carnaval para mulheres que gostam de aproveitar a folia podem ser verdadeiros tormentos devido aos casos de assédio e importunação sexual. 

Casos como os das folionas poderiam ser enquadrados na recente lei de importunação sexual. Sancionada em setembro de 2018, a lei 13.718 tipifica a prática “contra alguém e sem a sua anuência de ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. O estado do Rio de Janeiro registrou 19 casos de crimes de importunação sexual durante o período de Carnaval de 2019. A Gênero e Número obteve os dados via Lei de Acesso à Informação, com a Polícia Civil.

O Carnaval do Rio recebeu 7 milhões de pessoas em 2019, de acordo com a Riotur, órgão de turismo da prefeitura. Considerando o alto número de foliões, 19 casos é um índice baixo de registros, mas houve um salto em relação aos últimos anos. Entre 2015 e 2018, houve somente sete registros de crimes de assédio sexual nos períodos de Carnaval. Em 2019, o delito foi registrado oito vezes. Somados aos casos de importunação, 27 mulheres denunciaram à Polícia Civil terem sido violadas nos dias de festa no ano passado.  

Durante os últimos cinco anos, o crescimento do número de registros de assédio sexual também é notável, mesmo fora do carnaval. Em todo o ano de 2015, foram somente 57 casos, número que praticamente se manteve no ano seguinte (52). Em 2017, foram pelo menos 235 (parte dos dados da Polícia Civil daquele ano não continha o gênero da vítima). Em 2018, os casos caíram para 199, mas no ano passado, primeiro com a vigência da Lei de Importunação Sexual, houve um salto nos registros: 2.043 (registros de assédio somados aos de importunação). No campo jurídico, o assédio é configurado quando há uma relação de hierarquia entre vítima e agressor, que se aproveita de sua posição para fazer ameaças ou cometer a violência. 

 

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A delegada Débora Rodrigues, titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de São Gonçalo (região metropolitana do Rio), falou à Gênero e Número sobre a importância da sanção da lei 13.718 para o aumento considerável de registros.

“Antigamente, isso era uma contravenção penal e o autor saía pela porta da frente da delegacia. Não havia prisão em flagrante. Então, imagine uma vítima que viu, por exemplo um homem se masturbando, ejaculando nela, vendo ele sair assim? Era desestimulante, porque a vítima se expunha e o agressor saía livre. Agora, não: ele fica preso. Com certeza a ideia de impunidade acaba e a mulher se sente mais segura para denunciar”, avalia Rodrigues.

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Para a advogada Jéssica Silva de Oliveira, especialista em direito da mulher e antidiscriminatório, a sanção tipificada é importante, mas ainda é preciso investir em campanhas de educação sexual.

“Ter o amparo legal é importante, no sentido de coibir essa prática, mas também precisamos falar de educação sexual e comportamental, para homens se conscientizarem da prática machista que é achar que o corpo da mulher está à sua disposição. Temos que trabalhar nos dois campos: na legislação, para que haja a lei que proíba, mas também na educação, no sentido de conscientizar”, analisa a advogada.

Ela conta que em momentos em que acompanhava vítimas de violência, percebeu muita resistência de agentes da lei, questionando as mulheres e colocando em dúvida seus depoimentos. Para Oliveira, isso também precisa mudar, caso o objetivo seja reduzir tanto o crime, quanto a subnotificação: “Por mais que existam as DEAMs, é necessário maior preparo e treinamento específico para os agentes que estão à disposição”.

Outro fator associado à subnotificação é a culpa que a vítima sofre, por acreditar que possa ter feito algo para estimular a agressão. Maria, que abre esta reportagem, conta que se questionou se a sua roupa, um biquíni, poderia ter dado abertura para um desconhecido beijá-la: “Eu fiquei sem acreditar naquilo, e minha primeira reação foi olhar para ver se meus seios estavam de fora, como se eu pudesse ter evitado alguma coisa”, relembra.

Para Oliveira, esse comportamento é absolutamente usual, mas as campanhas também têm tranquilizar as mulheres neste sentido. 

“Elas acham que têm culpa, seja por conta da vestimenta ou do comportamento, mas a vítima nunca tem culpa. É questão do homem se conscientizar de que o corpo dela não está disponível, de que se não há consentimento, o não é não”, afirma.

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“Não tem desculpa”

No último dia 18, o Governo Federal lançou a campanha “Não tem desculpa”, com objetivo de coibir os assédios no Carnaval. Com cartazes e distribuição de material nas principais praças do Carnaval de rua, a campanha pretende estimular vítimas e testemunhas de assédio a denunciarem os crimes no Disque 180. 

Para a delegada Débora Rodrigues, o reforço e a repetição desse tipo de campanha são importantes, porque visam também conscientizar a vítima: “Muitas ainda não sabem identificar quando sofrem assédio no Carnaval”, afirma. Um dos textos da “Não tem desculpa” informa que achar que “era só um beijinho” também é caracterizado como assédio. 

Campanha do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos ressalta importância da denúncia e do respeito às mulheres no Carnaval | Imagem: Divulgação

As mulheres vítimas que contaram suas histórias para a reportagem foram questionadas se pensaram em denunciar seus crimes a uma delegacia. Ambas disseram que preferiram “deixar para lá”. Joana ainda complementa: “Não teria nem como saber quem era o cara”.

Mas a delegada Jéssica Silva de Oliveira afirma que, ainda que seja difícil, é possível a mulher recolher provas para tentar localizar o agressor. 

“No Carnaval, o importante é contar com ajuda de quem estiver ao redor. Tirar foto, fazer vídeos, tudo para identificar o agressor. É preciso partir para medidas mais práticas. No bloco, o que se pode fazer? Não tem como pedir documento. Então faça fotos, vídeos, tente alertar uma unidade policial”, aconselha.

As mulheres que forem vítimas de assédio durante o Carnaval podem reportar o episódio para qualquer autoridade mais próxima, como policial militar, bombeiro ou guarda municipal. No Rio de Janeiro, as delegacias da mulher estarão abertas 24 horas e com reforço de efetivo. Todas as práticas pretendem encorajar a denúncia. 

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Blocos contra o assédio

No Rio de Janeiro, a Defensoria Pública se reuniu com blocos de rua para apoiar a criação da Atenta e Forte, a Comissão de Mulheres contra a Violência no Carnaval. Na semana que antecede a festa, já são 60 blocos apoiando as ações da comissão. No pré-Carnaval, dezenas de blocos já leram o manifesto, que afirma: “Este bloco não tolera assédio, estamos juntas. Denuncie!”. A intenção é alertar os agressores e estimular a denúncia.

Ainda assim, a Atenta e Forte avalia que muitas mudanças institucionais precisam ser feitas. A advogada Tatiana Moreira Naumann, que apoia a comissão e é especialista em violência contra a mulher, acredita que a divulgação da lei de importunação sexual em períodos pontuais não é efetiva. Para ela, é preciso mais publicidade: “A ausência de campanhas de conscientização repercute tanto para os infratores, que não temem a aplicação da lei, como para a vítima, que não conhece os direitos nela existentes”, avalia. 

Por isso, a Atenta e Forte está fazendo ações mais robustas direcionadas às vítimas, para conscientizá-las de seus direitos. Na Cinelândia, região central do Rio, por onde passam diversos blocos, haverá uma tenda de acolhimento coletivo para prestar auxílio às mulheres. No local, haverá psicólogas, advogadas, enfermeiras e divulgação de material de conscientização. O espaço contará também com uma patrulha Maria da Penha e um plantão judiciário, com objetivo de facilitar o encaminhamento da denúncia. 

Para Jéssica Silva de Oliveira, é positivo o Poder Público apoiar ações como esta e a sociedade “sair da inércia” em relação ao assédio: “Eu acho que temos algum avanço. Claro que estamos longe do mundo ideal mas não podemos negar que houve um avanço no sentido de resguardar a mulher vítima”.

Violência contra a mulher é crime. No Carnaval ou em outros momentos, Disque 180 e denuncie.

*Lola Ferreira é jornalista e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número.

** Os nomes das mulheres foram trocados.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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