Homens brancos são maioria entre os com maior financiamento e ocupam mais cadeiras na Câmara | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Financiamento de campanha para homens negros não avança e reforça estrutura racista da política

Estudo da Fundação Getúlio Vargas também mostra que mulheres receberam mais recursos nas eleições de 2018, mas, assim como homens negros, mulheres negras ainda são subfinanciadas

Por Lola Ferreira*

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  • Reflexo da desigualdade

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  • Efeito Marielle?

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  • O negro na extrema-direita

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A figura de Hélio Negão, sempre acompanhando o presidente da República em seus compromissos mais importantes (esta semana esteve na viagem de Jair Bolsonaro à Ásia), tenta transmitir uma ideia que não condiz com a realidade da maioria dos homens negros que disputaram as eleições em 2018. Com uma campanha que custou menos de R$ 100 mil, ele foi o deputado federal mais votado no estado do Rio de Janeiro no ano passado, surfando na onda do bolsonarismo e tentando desmentir em seus discursos o racismo que permeia as estruturas partidárias.

Apesar do desempenho extraordinário de Hélio Negão, pretos como ele foram apenas 4% entre os homens eleitos para a Câmara em 2018, mantendo o mesmo índice de 2014. Estudo recente da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP) explica este desempenho e mostra que o grupo de homens negros (que inclui pretos e pardos) foi subfinanciado nas eleições de 2014 e novamente em 2018 não registrou aumento significativo na razão entre a receita para a campanha e número de candidatos, mantendo o subfinanciamento. Os demais grupos subfinanciados eram as mulheres negras e brancas, mas ambos receberam mais recursos no ano passado e as brancas, inclusive, alcançaram excesso de financiamento. 

O relatório “Democracia e representação nas eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero”, da Escola de Direito da FGV, considera uma divisão entre os candidatos competitivos e não competitivos. Para ser classificado como competitivo, aquele que pleiteia uma cadeira na Câmara dos Deputados precisa ter votação igual ou a superior a 15% do quociente eleitoral no estado em que se candidatou. Qualquer um que não atinja este percentual, é classificado como “não competitivo”. 

Entre os candidatos competitivos, 36% dos homens brancos receberam mais do que R$ 100 mil. Este índice é de 25% para homens negros. Entre as mulheres, apenas 18% das negras conseguem ter mais que R$ 100 mil para financiar sua campanha.

 

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A FGV também elaborou o índice de razão entre recursos e candidatos. Quanto mais próximo do 1, mais proporcional é a distribuição de recursos para determinado grupo. Acima de 1, há excesso de recursos. Abaixo de 1, existe o subfinanciamento. O grupo de homens brancos, por exemplo, teve uma razão de 1,05 nas eleições de 2018, as  mulheres brancas tiveram excesso de recursos: 1,22. Em 2014, esses índices foram 1,12 e 0,95, respectivamente. 

O grupo de mulheres negras foi o único que, antes subfinanciado, conseguiu dar um salto e se aproximar do ideal de financiamento. Em 2014, o índice da FGV marcava de 0,46 e em 2018 subiu para 0,93. O grupo de homens negros passou de 0,7 para 0,75, uma pequena variação.

 

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Para Luciana Ramos, uma das coordenadoras do estudo da Escola de Direito da FGV, o que mais saltou aos olhos na análise dessas receitas foi exatamente o fato de como diferenças de gênero e raça interferem no processo eleitoral: “Nas últimas eleições, isso ficou muito patente. Houve diferença importante em relação a 2014, porque naquele momento o que importava era gênero: mulheres recebiam menos que homens brancos e negros”, analisa. 

O pontapé do estudo, inclusive, foi a necessidade de uma melhor análise da questão das candidaturas laranjas: “No fundo, a gente está buscando tentar compreender um pouco melhor a questão. Falamos muito sobre a questão das candidaturas laranjas PSL, mas há outras situações em que, às vezes, as mulheres não são laranjas, mas suas candidaturas são inviáveis. Na nossa percepção, isso não deve acarretar cassação e inelegibilidade. Olhar para dados de financiamento é importante, assim como número de votos e movimentação nas redes sociais. Uma série de fatores determinam ou não candidaturas laranjas”, afirma. 

Raça e eleições

Mestre em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/Uerj), Wescrey Portes Pereira desenvolveu o trabalho “Raça e Eleições: apontamentos sobre os obstáculos à política de vereadores negros no Rio de Janeiro”. Em entrevista à Gênero e Número, ele destaca que a formação dos quadros decisórios dentro dos partidos políticos já dão o tom do que pode ser a divisão dos recursos. “Temos que olhar com mais atenção para os processos de recrutamento e disputa interna, ver como funciona a disputa de poder do partido. A participação de candidatos negros e negras na estrutura política organizacional é importante na corrida eleitoral”, afirma.

Também por isto, na avaliação de Portes, não é só de muito dinheiro que se faz uma campanha política. 

“É preciso um conjunto de outras coisas que envolvem a máquina partidária, que ajudam a fazer o motor da campanha rodar, que estão ligados à estrutura de partido: advogado, contadores, responsáveis por redes sociais. Portanto, fazer articulação é o ponto importante, unindo uma posição interna que possibilite acesso a recursos e, ao mesmo tempo, uma organização da base da campanha, para chegar a mais pessoas.”

Em sua pesquisa, Portes entrevistou candidatos à Câmara Municipal do Rio em 2016 para saber suas percepções sobre o fator raça no processo eleitoral. O que ficou evidente durante o processo é que, para os candidatos, os partidos refletem a discriminação racial já vista na sociedade em geral.

Reflexo da desigualdade

Outro fator analisado pelo estudo da FGV/SP foi a distribuição de recursos de acordo com a quantidade de candidatos. Entre os candidatos competitivos, os homens negros formam o único grupo que recebeu menos recursos de todos os tipos de doação de campanha (renda do partido, doação de pessoa física, recursos próprios e outros). Eles foram 21% dos candidatos a deputado federal e, proporcionalmente, receberam apenas 16% dos recursos de partido. As mulheres negras tiveram uma ligeira superioridade: eram 3,9% do total de candidatos à Câmara dos Deputados e receberam 4,2% dos recursos de partido. 

 

 

Tentando tornar esse cenário mais justo, a Frente Favela Brasil (FFB) é um grupo que está em formação para se tornar, oficialmente, um partido político. Com atuação em 20 unidades federativas, o objetivo é fortalecer candidaturas de pessoas negras e de periferia. Anna Karla Pereira, da Executiva Nacional do FFB, explica que uma das formas de atuação é disputar mais espaço dentro dos partidos, mas também pensar em estratégias “por fora”.

“A disputa não começa no período eleitoral, ela tem uma disparidade muito profunda a partir das possibilidades de estudo e de status. Se a nossa realidade é diferente, temos que pensar diferente, caminhar por dentro e por fora, pensar alternativas para se fortalecer até conseguir disputar com um pouco mais de igualdade no processo.”

Pereira avalia que, para o homem negro, o processo pode ser ainda mais difícil, considerando os estereótipos alimentados na sociedade em relação a eles. O fato de serem associados comumente à figura de desonestos e marginais ao ideal de masculinidade, de acordo com ela, implica a falta de acesso a todo tipo de recurso para campanhas políticas. 

“Existe espaço para o homem negro reproduzir machismo, mas não sobra para ele o privilégio social e financeiro do homem branco”, diz ela. Para Anna, isso tem relação com o reconhecimento entre pares: por ser uma maioria de homens brancos que detém o poder dentro dos partidos, eles priorizam também os homens brancos, escanteando homens e mulheres negros.

Efeito Marielle?

Quando o número de mulheres negras eleitas disparou nas eleições de 2018, muito se falou sobre a influência da execução da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ). Será que, paradoxalmente, a perda de figuras políticas fundamentais ajudou a viabilizar candidaturas de determinados grupos? Para Wescrey Portes, não necessariamente. 

“Na eleição de Marielle, em 2016, já havia algumas mulheres negras despontando com bastante voto, como ela própria e a Talíria Petrone (ex-vereadora de Niterói e atual deputada federal pelo PSOL). Para dizer que existe ‘efeito Marielle’, deveria haver um processo anterior. O assassinato político cria efeito imediato, mas não parece ser um efeito que altere a estratégia política propriamente dita. É difícil olhar isso como uma consequência, inclusive porque as eleições de 2018 foram atípicas, sobretudo pela ascensão da extrema-direita. Acho que para aferir um efeito pós-morte, temos que olhar com um pouco mais de calma, para além de 2018”, avalia.

O negro na extrema-direita

A extrema-direita, aliás, utilizou a pauta racial com alguns poucos nomes para disputar a discussão sobre o espaço dos negros na política. Com as alcunhas de Hélio Bolsonaro e Hélio Negão, o deputado federal Hélio Lopes foi eleito por 345.234 pessoas no Rio de Janeiro, o mais votado do estado. Número absolutamente maior em comparação aos 480 votos que recebeu em 2016, quando foi candidato a vereador em Nova Iguaçu, também no Rio.

Após sua vitória, ele bradou nas redes sociais contra os “comunas” e questionou: “Quem é racista?”, lembrando que ele, o homem com mais votos no estado, também era negro. Na imagem, estava ao lado do então candidato a presidente da República Jair Bolsonaro. Durante a campanha, era possível vê-lo com uma camisa com os dizeres “Minha cor é o Brasil”, acompanhado por Bolsonaro em vários momentos.

Sempre ao lado de Jair Bolsonaro, Hélio desloca a pauta racial para afastar questões prioritárias que os políticos negros discutem há décadas | Foto: Divulgação / Facebook

Também na análise de Wescrey Portes, o sentido que a extrema-direita usa para pautar a questão racial não é sem propósito. “Ele mobiliza uma contraposição aos movimentos negros que enfatizaram, nos últimos 40 anos, a discriminação racial. Ele traz o discurso mais clássico do conservadorismo sobre a ‘democracia racial’”. 

Após a eleição, Hélio continua acompanhando Jair Bolsonaro, inclusive em viagens internacionais. Para Portes, é um salvo-conduto para o clã Bolsonaro negar qualquer acusação de racismo. A presença de Hélio ao lado do presidente também reforça o discurso meritocrático, e contribui para que questões como desigualdade de distribuição de recursos dentro de campanhas políticas não sejam tratadas com atenção, bem como as outras desigualdades causadas pelo racismo na sociedade. 

“É um discurso do mérito, de dizer que negros estão se vitimizando quando na verdade precisam batalhar para ter o que querem. Fomentam a ideia de que se você trabalhar, conquista. Essa contraposição afirma que o racismo não é um problema.”

Para Anna Karla Pereira, dados como este, já debatidos pelo Frente Favela Brasil, podem auxiliar na discussão política, mas não só: “Que país desenvolvido tem um abismo de desigualdade como temos? Precisamos levar esse debate para um nível mais profundo. Não é suficiente ter só candidatos brancos, temos que pensar em melhorar as estruturas”.

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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