Homens e brancos dominam direção de filmes na programação do Festival do Rio

Para coautora de levantamento sobre representatividade no festival, “falta sensibilidade aos setores tradicionais do cinema para lidar com as assimetrias” de gênero e raça, que seguem sendo reproduzidas

Por Carolina de Assis*

Carolina de Assis

  • Reprodução de assimetrias

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  • Cor e gênero nas inscrições dos festivais

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  • O “compromisso ético” das instituições culturais

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A 19ª edição do Festival do Rio trouxe 250 títulos às telas de cinema da capital carioca entre 5 e 15 de outubro de 2017. Embora afirme ter como missão exibir “o que de mais criativo e plural se produz ao redor do globo”, a programação do Festival segue privilegiando a produção de homens brancos e de países da Europa e da América do Norte, segundo um levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da UERJ (Universidade do Estadual do Rio de Janeiro).

Pelo terceiro ano consecutivo, o GEMAA analisou o perfil de raça, gênero e origem geográfica dos cineastas responsáveis pelos longas-metragens em cartaz no evento. O estudo constatou que, nestes três anos, pouca coisa mudou em relação à presença de mulheres e de pessoas não-brancas na direção dos filmes apresentados pelo Festival.

Em 2017, 27% dos títulos no Festival foram dirigidos por mulheres – um pequeno avanço em relação a 2016 e 2015, quando elas foram responsáveis por 22% dos filmes.

Já em relação a raça, os dados dos três anos indicam que “não houve qualquer esforço da organização para promover maior diversidade”, diz o relatório. No Festival do Rio de 2017, somente 5% das diretoras e diretores de todos os longas em cartaz não são brancos e 7% são asiáticos. Entre as mulheres, as não-brancas são apenas 2%; entre os homens, os não-brancos são 3%.

O GEMAA dividiu as categorias étnico-raciais entre brancos (europeus e seus descendentes), não-brancos (africanos negros, negros não africanos e pessoas que não são classificadas em seus países de origem como brancos) e asiáticos (povos da China, Japão, Coréias e sudeste asiático e seus descendentes). Esta classificação se dá porque as categorias raciais dos vários países que entram no estudo são muito diversas e o objetivo é apontar o domínio do grupo branco, explica a cientista social Marcia Rangel Candido, uma das autoras da pesquisa.

O levantamento também constatou que 30% dos diretores de longas são brasileiros, o que se explica pelo fato de que o Festival se coloca como uma vitrine da produção cinematográfica nacional. Os principais continentes representados na programação são Europa (27%) e América do Norte (19%). Entre os restantes, 11% são da Ásia, 9% são da América Latina (excluído o Brasil), 3% da África e 1% da Oceania.

Reprodução de assimetrias

O estudo do GEMAA concluiu que “o Festival do Rio expressa a continuidade de um processo seletivo que privilegia a homenagem a grupos sociais tradicionalmente privilegiados: homens, brancos, europeus ou estadunidenses.”

Para Candido, “falta sensibilidade aos setores tradicionais do cinema para lidar com as assimetrias”, já que “uma cadeia múltipla de fatores incide sobre quem tem maior visibilidade.”

“Alguns profissionais costumam justificar que mulheres e negros têm poucas produções de qualidade e que, portanto, é natural que os homens brancos continuem sendo maioria. Contra isso, mulheres e negros(as) têm organizado festivais específicos com o objetivo de mostrar que suas produções existem e que padecem de julgamentos frequentemente equivocados”, afirma a pesquisadora.

Ela cita iniciativas como o Ficine (Fórum Itinerante de Cinema Negro), o FEMINA (Festival Internacional de Cinema Feminino) e o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe. Candido acredita que “a resposta para as desigualdades no Festival do Rio não é simplesmente delimitar proporções obrigatórias de participação de produções, mas sim gerar oportunidades para que especialistas que já são mais sensíveis à diversidade possam enriquecer os critérios de seleção do evento”.

Cor e gênero nas inscrições dos festivais

A cineasta Yasmin Thayná, do aclamado “Kbela, o filme”, aponta que a maioria dos festivais de cinema não tem dados sobre o gênero e a raça dos realizadores dos títulos selecionados. Uma solução seria incluir nas fichas de inscrição dos filmes os quesitos “cor/raça” e “gênero” dos cineastas. Segundo ela, essa é uma reivindicação entre cineastas atentos à representatividade de gênero e racial, e sua realização possibilitaria mapear quem são as pessoas que estão fazendo cinema no Brasil e direcionar políticas públicas de fomento ao audiovisual.

“O festival de cinema é chave para isso. Ele tem um dado que muitas vezes a Ancine [Agência Nacional do Cinema, órgão estatal] não tem, pois há muitos filmes independentes que a Ancine nem sabe que existe”, diz a cineasta, que cita o festival da Semana dos Realizadores, que também acontece no Rio de Janeiro. “O ‘Semana’ recebe mais de mil inscrições por ano, são mais de mil filmes. Você tem aí um dado que cobre o Brasil inteiro, todas as regiões, e sobre filmes sem nenhuma logomarca, produzidos sem nenhum apoio.”

“Fazer a coleta destes dados é importante para a gente entender qual é o nosso cenário e não ficar dizendo cegamente ‘ah, não tem indígena na programação’. Por que não tem? Às vezes não tem inscrição, de verdade. Não sei se é o caso do Festival do Rio, mas em festivais menores pode acontecer, e essa ausência significa alguma coisa. Se a gente conseguir somar os dados de diferentes festivais, podemos entender o que eles dizem e usar essas informações politicamente. É muito mais do que uma questão de minorias: é uma questão de política nacional”, afirma Thayná.

Cena de "Peripatético", de Jéssica Queiroz

O “compromisso ético” das instituições culturais

Para o crítico de cinema e cineasta Juliano Gomes, os números da representatividade no Festival do Rio apontam a “necessidade ética” das instituições, especialmente as ligadas à arte e à cultura, de intervir em seu campo de ação e “exercer movimentos em direção ao minoritário”.

“Esse minoritário pode ser o cinema de baixo orçamento; o cinema que é feito na internet, fora das salas de cinema; pode ser em direção à convocação de atores alijados do espaço cinematográfico historicamente, como negros, mulheres e LGBTTQ”, acredita. “A estética e a política se definem por introduzir no jogo o que não estava, e isso opera em todas as dimensões: seja um estilo, uma cadência, uma abordagem, mas também ações no campo do ‘poder fazer’, de quem entra no jogo, que é muito pautado pela economia”.

Gomes foi um dos nomes do cinema nacional que levou este debate ao Festival de Brasília, cuja última edição aconteceu em setembro. Em 50 anos de Festival, esta foi a primeira vez que diretoras negras participaram da mostra competitiva – e foram premiadas. O longa “Café com Canela”, de Glenda Nicácio, levou os prêmios do Júri Popular e de Melhor Roteiro, e o curta “Peripatético”, de Jéssica Queiroz, o Prêmio especial de curta-metragem.

“Para haver debate é preciso haver visibilidade. Esses grupos são marginalizados pela invisibilização. Por outro lado, quem tem poder não quer aparecer, não lhe interessa aparecer: é desagradável ser chamado, por exemplo, de branco, mas é necessário”, diz Gomes. “Os grupos marginalizados têm seus corpos e identidades já marcados. É preciso inscrever e tornar mais visíveis quem são os corpos do poder, e revelar que estratégias embasam esse poder, esse privilégio. Uma vez visível, o passo seguinte é poder questionar, comparar, analisar.”

O crítico também acredita que levantamentos como o do GEMAA são úteis neste processo. “É preciso transparência, dados, planilhas abertas. Nesse sentido, pesquisas como essa são muito importantes. É urgente politizar as planilhas, repensar as metodologias, em tudo, revirar os modos de ver as coisas. Essa é talvez uma definição do que é cinema”, associa.

A Gênero e Número entrou em contato com a assessoria do Festival do Rio e colocou as questões levantadas sobre a curadoria do evento pelo estudo do GEMAA, por Yasmin Thayná e por Juliano Gomes. Não houve resposta até a publicação desta nota.

Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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