Jair Bolsonaro empossa a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Governo Bolsonaro tem início com pasta dos Direitos Humanos hiperconectada a discurso evangélico

Medidas, ações e pronunciamentos do presidente e da ministra Damares Alves apontam que “tradição judaico-cristã” é tida como diretriz para políticas públicas de direitos humanos

Por Lola Ferreira*

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  • Questão indígena

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  • "Ideologia de gênero"

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  • Monitoramento de ONGs

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Ao anunciar a nova configuração ministerial na Medida Provisória 870, Bolsonaro consolidou o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Ao unir a pauta dos direitos humanos com valores associados principalmente a uma agenda tendenciosamente evangélica, Bolsonaro passa a mensagem de que voz e demandas vindas dos grupos religiosos serão prioridade. Nos primeiros 10 dias, o anúncio ao combate à suposta “ideologia de gênero”, a reafirmação constante de um conservador conceito de família e a transformação do Ministério dos Direitos Humanos nesse ministério-tripé deram o tom do que será o início de governo: foco na tradição judaico-cristã na discussão sobre políticas públicas relacionadas a direitos.

Apesar de o presidente ser católico, as mudanças anunciadas já no primeiro momento se associam ao discurso evangélico e pentecostal, que contribuiu fortemente para alçar o capitão reformado ao topo das urnas em outubro passado. “A administração Bolsonaro começa a desenhar uma outra concepção de direitos humanos.” Esta é a leitura da doutora em Ciência Política pela UFF (Universidade Federal Fluminense) Naiara Alves, pesquisadora da relação entre os direitos humanos e o cristianismo no Brasil.

Alves explica que foi do governo Fernando Henrique Cardoso até o governo Michel Temer que o Brasil abraçou, de fato, o movimento internacional de direitos humanos, definido a partir da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, da Organização das Nações Unidas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos define, basicamente, que todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. O artigo 2º do documento define ainda: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.

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Mesmo que os direitos humanos tenham ficado mais consolidados na Constituição de 1988, o movimento pró-direitos ganhou corpo com ativismos e construção de políticas nacionais — como a de Saúde da População Negra, a de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher e da Saúde Integral da População LGBT+ — e órgãos do Estado específicos, como a Secretaria de Políticas para Mulheres e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT.

A pesquisadora aposta que as primeiras movimentações de Bolsonaro em relação à pauta LGBT+, por exemplo, indicam que o roteiro será diferente neste mandato. Ela destaca que ao longo da história recente, a premissa de que “direitos humanos servem para defender bandidos” ajudou a eclipsar o conceito disposto na declaração.

“Essa falta de conhecimento em relação ao termo ‘direitos humanos’ e às premissas do que seriam os direitos humanos foi importante para a consolidação do governo Bolsonaro. Existe um esforço de enfraquecer a concepção robusta, contemporânea e internacional de direitos humanos [como consta na declaração universal]”, afirma Alves.

As ações dos primeiros 10 dias de governo têm a ver, de acordo com a pesquisadora, com a grande tendência fundamentalista presente no discurso bolsonarista do presidente (e de seu séquito), que tende a rejeitar formas de composição familiar que não consistam em um pai, uma mãe e filhos, orientação sexual que não seja heterossexual e até orientação política que não seja conservadora.

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A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, participa da solenidade de transmissão de cargo do novo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Ministério do tripé

Para Alves, a criação do ministério-tripé passa o recado de que agora os atores que apitavam na construção das políticas públicas sobre o tema, como mulheres, negros e LGBT+, não terão mais tanta centralidade como nos governos recentes. Com um orçamento de R$ 398.267.203 aprovado na Lei Orçamentária Anual para 2019 — cerca de R$ 21 milhões a menos que do que o empenhado em 2018 — e um secretariado composto majoritariamente por religiosos e conservadores, o destaque do ministério fica por conta da inclusão de “Família” na pasta. A ministra Damares Alves explicou em entrevista à GloboNews que todas as políticas públicas pensadas no mandato de Bolsonaro levarão em consideração a manutenção do “vínculo familiar”, o que vale para Direitos Humanos mas também para Saúde e Educação.

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Essa ideia da família vem como um elemento discursivo legitimador. [O cidadão entende que] permitir a violação de direitos em determinadas áreas de risco, como favelas, é ruim, mas também tem um motivo para ser. O conceito de família pode legitimar medidas de viés autoritário, uma política de combate às drogas tradicional e conservadora, por exemplo. — Naiara Alves, doutora em Ciência Política pela UFF e pesquisadora sobre cristianismo e direitos Humanos no Brasil

Questão indígena

O tema que gerou maior debate em relação aos direitos de minorias nos primeiros 10 dias do governo Bolsonaro foi a questão indígena. A MP 870 também determinou que “a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas” passe das mãos da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura, a pasta que dialoga com o agronegócio nacional e é comandada pela ruralista Teresa Cristina.

No Twitter, rede eleita como canal principal de comunicação do presidente com os cidadãos, Jair Bolsonaro explicou que a medida visa “integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”.

Em resposta à determinação, uma carta assinada pelos povos Aruak Baniwa e Apurinã, do Amazonas, foi divulgada. No documento, as lideranças indígenas refutam o argumento do presidente de integração: “Não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de governo e do Estado Nacional Brasileiro”. E acrescentam: “Quem não é indígena não pode sugerir ou ditar regras de como devemos nos comportar ou agir em nosso território e em nosso país”.

Brasília - Índios Munduruku fazem manifestação, em frente ao Ministério da Justiça, pela demarcação da terra indígena Sawre Muybu, no Pará.

Para Naiara Alves, este primeiro momento mostra que há dois eixos fundamentais na forma de Bolsonaro lidar com as questões de direitos humanos. Se na questão moral irá prevalecer o apelo à tradição “judaico-cristã”, na questão indígena irá pesar a retórica patriota, que também esteve presente durante a campanha presidencial, de integração e valorização dos bens nacionais.

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) entrou com representação na Procuradoria Geral da República para suspender o trecho da medida provisória que determina a transferência. Fato posterior à decisão de Bolsonaro, a Funai denunciou que um grupo ligado a madeireiros invadiram Terra Indígena Arara, no sudoeste do Pará, para ocupar a terra e extrair madeira ilegalmente. A invasão foi detectada no dia 2 de janeiro.

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LGBT+

A MP 870 também teve uma alteração importante para a população LGBT+. Se antes os direitos dessa parcela da população eram explícitos no art. 13 do decreto 9.122/2017, a MP que organizou o governo Bolsonaro suprimiu o termo. Decreto posterior, publicado em edição extra do Diário Oficial, deixou mais explícito que cabe à Secretaria Nacional de Proteção Global  “coordenar as ações referentes às políticas públicas voltadas aos públicos vulneráveis” como população LGBT.

Com a repercussão negativa, Bolsonaro foi ao Twitter mais uma vez explicar que “não haverá abandono de auxílio a qualquer indivíduo nas diretrizes de Direitos Humanos”, sem citar a população LGBT+. Damares Alves, ministra que comanda a pasta, afirmou em sua posse que nenhum direito conquistado será violado.

Sergio Queiroz assume secretaria que abrigou demandas da população LGBT+ após reorganização. | Foto: Reprodução / Youtube TV Correio

O secretário responsável pela Proteção Global é Sérgio Augusto de Queiroz. Ele é procurador da Fazenda Nacional em João Pessoa, pastor e comanda a igreja Cidade Viva, na capital paraibana. Em entrevista divulgada em 2015, Queiroz afirmou: “Amarei sempre o meu público, mas eu vou continuar defendendo que o plano primeiro de Deus é o homem com a mulher, a procriação e a criação de nossa sociedade foi assim, desde que a história é história e que o mundo é mundo”, e explicou que a igreja aceita, ainda assim, o homossexual “de braços abertos”. Em seu perfil do Facebook, Queiroz se coloca contra a “ideologia de gênero” e publica muitas informações sobre os cultos religiosos de que participa.

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"Ideologia de gênero"

Apesar de ser um conceito que não conta com validação acadêmica ou mesmo que se sustente em referências de estudos religosos, a tal “ideologia de gênero” também esteve no centro dos debates nos primeiros dias de governo Bolsonaro. O pontapé foi a declaração da ministra Damares Alves de que “as meninas usam rosa e os meninos usam azul” na “nova era”, referindo-se ao novo mandato. Nas redes sociais, um debate sobre estereótipos de gênero durou vários dias.

Na ala progressista, alguns chamavam a atenção para uma “cortina de fumaça” planejada pelo governo para tirar o foco de questões mais concretas, como a demarcação das terras indígenas. Para Naiara Alves, o conceito de “cortina de fumaça” como algo proposital é inverossímil.

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Pensar que é cortina de fumaça é pensar que tudo que ela diz é calculado por ela ou outro grupo. Eu acho que é um efeito incidental: acaba se tornando cortina de fumaça, mas não foi pensado para isso. Quando a Damares fala, parece um pouco com as falas do Bolsonaro na época de campanha: eles sabiam que haveria apoio e que se manteriam sendo assunto. Eu acho que é possível que este seja um fator explicativo, para além da percepção hiper-racionalista de uma coisa muito bem orquestrada.

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Monitoramento de ONGs

No artigo 5º da MP 870, que reorganizou as estruturas governamentais, Bolsonaro determina que a Secretaria de Governo deverá “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. A Abong (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais) afirmou, em nota, que não cabe à esfera pública tais ações.

Por não reconhecer a legitimidade do trecho da MP, a Abong também informou que irá questionar administrativamente a administração federal para que o trecho seja anulado e se adeque às normas constitucionais. O órgão afirma que, como está, o trecho fere o artigo 5º da Constituição Federal, que determina o direito à liberdade.

O polêmico trecho da MP entra em consonância com a fala de Bolsonaro já no fim do primeiro turno das eleições. Em discurso transmitido pelas redes sociais, ele declarou que “iria acabar com todos os ativismos do Brasil”.

(Brasília - DF, 09/01/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante execução do Hino Nacional. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Pacto de migração

Nesta semana, Bolsonaro tomou mais uma decisão contrária à luta pelos direitos humanos: anunciou que o Brasil se retirou do Pacto Global de Migração.

No Twitter, novamente, Bolsonaro explicou a decisão: “Os brasileiros e os imigrantes que aqui vivem estarão mais seguros com as regras que definiremos por conta própria, sem pressão do exterior”. Em outra publicação, um trecho faz comparação entre o território nacional e uma propriedade privada: “Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros”.

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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