MMFDH não apresentou planejamento de gastos e execução orçamentária é nula, até agora | Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

Muito discurso e pouco dinheiro: ministério de Damares gasta apenas R$ 2 mil com mais vulneráveis na pandemia

Dos R$ 45 milhões disponibilizados para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos em ações que beneficiem mulheres, população de rua e povos tradicionais durante a covid-19, aproximadamente dois salários mínimos foram gastos

Por Lola Ferreira*

  • Frases vazias

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  • Ações lentas

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  • Dinheiro carimbado e pouca fiscalização

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“Ninguém fica para trás.” Esta é a frase que a ministra Damares Alves faz questão de repetir em toda coletiva de imprensa ou entrevista em que o assunto é a pandemia de covid-19. Titular da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, ela reforça a todo momento o apoio irrestrito e acolhimento que dá, em tese, a povos tradicionais, moradores de rua e mulheres vítimas de violência doméstica nesse período. Mas os gastos têm sido microscópicos até aqui: dos R$ 45 milhões disponibilizados para o ministério para ação contra a covid-19, foram gastos apenas R$ 2 mil até o dia 26 de maio.

Damares “ganhou” esse crédito extra em 2 de abril, com a assinatura da medida provisória 942. Passados quase dois meses, o dinheiro ainda não foi executado, que acontece quando um valor público efetivamente paga algum bem, serviço ou material, tampouco foi divulgado qualquer chamamento público (cujo objetivo é encontrar organizações parceiras para desenvolver determinada ação). Questionado sobre o planejamento de gastos, ações efetivas ou próximos passos, o ministério respondeu que o planejamento será divulgado em entrevista coletiva amanhã, 29 de maio, mais de dois meses após ser decretado estado de calamidade pública em razão da covid-19 no Brasil.

Na quarta (27), eram 411.821 os infectados pela covid-19 e 25.598 mortos nos registros oficiais. Mas o alto número de brasileiros atingidos diretamente pelo problema não é algo que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos possa resolver sozinho ou com um orçamento tão baixo diante do de outras pastas. O que está sob a tutela do MMFDH é a proteção dos povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, dos moradores de rua e das mulheres vítimas de violência doméstica, que neste cenário atual veem um acúmulo de problemas.

 

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Em artigo publicado na última semana, a antropóloga Carmela Zigoni, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), traz à tona a contenção de gastos da pasta e analisa seus efeitos. Os dados foram confirmados pela Gênero e Número no Portal da Transparência do governo federal. 

“O padrão [da pasta] é não saber fazer gestão de recursos, porque estamos quase no meio do ano. É um momento de flexibilização das regras para executar os recursos, mas até agora nada foi feito”, analisa Zigoni. Ela também chama a atenção para os gastos mínimos que o MMFDH fez já antes da pandemia, ainda que tenha um orçamento autorizado muito maior do que em 2019. 

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O orçamento para a pasta em 2019 foi de R$ 470 milhões, com execução de R$ 213 milhões. Para 2020, Damares tem um orçamento atualizado de R$ 673 milhões, mas até agora o gasto total foi de R$ 48,67 milhões. A GN detalhou a forma como este valor foi utilizado: 36% foram para pagamentos de servidores, 20% para “administração da unidade – despesas diversas” e 12,71% para o investimento no Ligue 180. O funcionamento dos conselhos de promoção da igualdade racial e dos povos tradicionais soma 0,13% dos gastos até agora. Nada foi gasto com manutenção, implementação e centros de atendimento às mulheres, bem como também foi estritamente ignorado até agora o fomento ao desenvolvimento de comunidades tradicionais.

 

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Frases vazias

Nas coletivas e entrevistas, Damares tem falado muitas frases de efeito, mas em nenhuma delas apresentou de forma concreta valores e ações do seu ministério. A única medida efetiva anunciada foi no início de abril, com ampliação dos canais para denúncia do Ligue 180, para o site e também para um aplicativo. 

No dia 2 de abril, disse que iria acolher os moradores de rua: “A partir de semana que vem, vamos fazer isso no Brasil: uma ação interna”, ela anunciou. Seria uma cooperação entre o Ministério da Cidadania, o programa Pátria Voluntária e a sua pasta. “Nós vamos acolher os moradores de rua, não vai ficar ninguém na rua”, afirmou. O “projeto” seria um acolhimento de pessoas em situação de rua em instituições religiosas, principalmente, mas também em comunidades terapêuticas. Até agora, não houve nenhum gasto executado nesse projeto

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Na mesma entrevista, Damares afirmou que estava em “ação imediata com os ciganos”. Anunciou visita aos acampamentos, com agentes de saúde. Vangloriou-se que são os vídeos, canais e instituições do ministério que chegam nesses povos, mas não deu detalhes de nenhuma ação específica. Também não há valor executado nesse sentido. O mesmo para os quilombolas.

Ações lentas

Para os indígenas, a ministra anunciou que iria reforçar o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com distribuição de cestas básicas. Realmente houve um aporte de R$ 7,7 milhões do Ministério da Agricultura e outros R$ 43 mil do Ministério da Justiça para esse fim, mas do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não saiu nada. 

Os indígenas estiveram presentes no discurso de Damares durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, que veio à tona por decisão do Supremo Tribunal Federal em caso que apura interferência do presidente da República na Polícia Federal. 

Quando Abraham Weintraub, ministro da Educação, falou “odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré”, foi ignorado, mas após a sua fala, Damares, sem qualquer prova, afirmou que houve uma contaminação criminosa em aldeias indígenas do Brasil com objetivo de incriminar o governo federal. Acusou governadores e prefeitos de violações de direitos humanos, mas não mostrou nenhum dado concreto. Na mesma reunião, Damares também não apresentou qualquer projeto de execução orçamentária.

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Os R$ 2 mil da ação para combate à covid-19 gastos até agora foram destinados à “administração da unidade”, sem que haja uma especificação de como foi usado. Há outros R$ 4,9 milhões empenhados (ou seja, destinados) para que instituições façam um mapeamento de Instituições de Longa Permanência para idosos (ILPI).

Uma tecla em que Damares sempre bate é a da necessidade de denúncias de violações dos direitos humanos. No dia 15 de maio, a pasta lançou uma campanha para que vizinhos e parentes denunciem ao menor sinal de maus tratos e violência doméstica em seu círculo próximo durante a quarentena imposta pelo novo coronavírus. Mas, para Carmela Zigoni, a importância da denúncia não anula a necessidade de investimento em outras frentes de combate à violência doméstica. 

“Uma mulher negra, periférica ou na favela, vivendo essa situação, já vai ser difícil. A campanha em que o vizinho liga e denuncia é legal, é importante criar essa rede. Mas é preciso esforço de pensar políticas pública com mulheres, com especialistas do campo, para que chegue de fato nesses lugares através das prefeituras e com serviços de ponta”, avalia.

Dinheiro carimbado e pouca fiscalização

Além dos R$ 45 milhões para covid-19, Damares também tem “carimbados” alguns valores, que foram aprovados pelo Congresso Nacional, no orçamento para 2020. Ou seja, dinheiro com destino certo, de acordo com as emendas dos parlamentares. A construção de Casas da Mulher Brasileira e de centros de atendimento às mulheres, por exemplo, têm reservados 14% dos R$ 353 milhões garantidos em emendas. As políticas de igualdade e enfrentamento à violência contra a mulher, 7%. 

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Para Masra Abreu, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), a execução orçamentária nula neste campo, até agora, é um indicativo da pouca atenção que o governo demanda às questões das mulheres. E ela reforça que o Ligue 180, apesar de importante e indispensável, não pode ser a única política nesse campo.

“O Ligue 180 foi uma conquista superimportante da antiga Secretaria de Política para Mulheres, mas era integrado a toda uma rede de serviços. Era uma política conjunta, que ainda que não funcionasse perfeitamente, tinha uma estrutura. Neste momento, só impulsionar, apesar de ser importante, é completamente insuficiente para dar vazão aos casos de violência que vêm ocorrendo”, avalia. 

O Cfemea faz monitoramento dos projetos de lei apresentados no Congresso, que podem impactar a vida das mulheres. Neste momento de pandemia, diz Abreu, vários têm sido propostos, mas “existe uma dissonância porque não há nada coordenado para lidar com o problema”. 

“Poderia ser feito algo no sentido de cobrar ações e medidas mais efetivas do Executivo. Apesar de ter muitos projetos, poucos deles vão no sentido do combate e da pressão política, da fiscalização dessas políticas não implementadas. Não é à toa que não há política e muito menos que tenhamos uma execução orçamentária pífia dessas.”

*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número

Os dados utilizados nessa reportagem foram extraídos do Portal da Transparência em 26 de maio de 2020.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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