DDM de Sorocaba se tornou nesta quarta-feira (30/01) a primeira no interior de São Paulo com funcionamento 24 horas| Foto: Governo de SP / Divulgação

Exceção nos Estados, delegacia da mulher aberta 24 horas não garante atendimento humanizado

Levantamento da Gênero e Número identificou apenas 21 delegacias especializadas de atendimento às mulheres com funcionamento 24 horas em todo o país; faltam profissionais e capacitação adequada para atender este tipo de ocorrência, dizem especialistas

Carolina de Assis

Vitória Régia da Silva

  • Controvérsia em São Paulo

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  • Falta de profissionais e de capacitação

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Objeto de controvérsia nas últimas semanas no Estado de São Paulo, as delegacias especializadas em atendimento às mulheres que funcionam 24 horas são exceções pelo país. Em levantamento inédito, a Gênero e Número identificou apenas 21 unidades em todo o Brasil que funcionam ininterruptamente. Elas se concentram nas capitais e somente no Rio de Janeiro e em São Paulo foram encontradas unidades no interior com atendimento 24 horas – com a de Sorocaba (SP) tendo iniciado este modelo nesta quarta-feira (30/01).

O levantamento foi realizado entre os dias 29 de janeiro e 1o de fevereiro por meio de contato telefônico ou por email com a assessoria da Polícia Civil de cada Estado e com as delegacias. A assessoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou que todas as Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs) do Estado têm atendimento 24 horas, mas só foi possível confirmar esta informação com quatro delas: as unidades de Nova Friburgo, Campos de Goytacazes, São Gonçalo e São João de Meriti. As ligações da reportagem não foram atendidas nas outras 10 DEAMs do Estado.

Em 12 Estados, não foi possível identificar delegacias da mulher que funcionem 24 horas por dia. As unidades que responderam ao contato da Gênero e Número informaram atender no horário de expediente da Polícia Civil, geralmente de 8 às 18h, enquanto em outras não houve resposta às chamadas realizadas.

Até o fechamento da reportagem, não houve resposta em tentativas de contato com a Polícia Civil e com as delegacias da mulher de Amapá, Rio Grande do Norte e Roraima.

Veja no mapa abaixo os endereços das delegacias especializadas em atendimento às mulheres com funcionamento 24 horas, segundo levantamento da Gênero e Número:

A delegacias especializadas no atendimento a mulheres pressupõem um atendimento mais acolhedor para vítimas de violência de gênero, que com frequência se deparam com o despreparo de policiais para lidar com este tipo de ocorrência. Para especialistas ouvidos pela Gênero e Número, a implementação do atendimento 24 horas nas delegacias especializadas esbarra na falta de recursos humanos e materiais, além de não garantir o atendimento humanizado às mulheres que recorrem às unidades.

Controvérsia em São Paulo

São Paulo inaugurou nesta quarta-feira (30/01) em Sorocaba, a 100km da capital, sua segunda Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) com atendimento 24 horas e a primeira no interior do Estado. A inauguração aconteceu em meio à pressão popular sobre o governador João Doria (PSDB/SP), que vetou o projeto de lei que garantia o funcionamento ininterrupto de todas as unidades das delegacias de defesa da mulher de São Paulo.  

O Projeto de Lei 91/2017, de autoria da deputada estadual Beth Sahão (PT/SP), foi aprovado pela Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) em dezembro do ano passado e dependia da sanção do governador do Estado para entrar em vigor. Em sua campanha eleitoral, Doria prometeu implementar o atendimento 24h em todas as DDMs, mas vetou o PL alegando que o projeto é inconstitucional por interferir “em domínio do Chefe do Poder Executivo”. Em um post no Twitter, o governador escreveu que “uma deputada petista escreveu um projeto de lei de forma inconstitucional, como muito que esse partido tentou introduzir no BR”. “Vetamos para ajustá-lo, aprová-lo e ampliá-lo. As mulheres serão protegidas na nossa gestão!”, acrescentou.

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Faltou vontade [de João Doria] e entender que ele não precisa ser o autor dessa proposta e que, mesmo que venha da oposição, ele deveria ter a sensatez de colocar isso em prática em nome das mulheres vitimizadas. — Deputada estadual Beth Sahão (PT/SP), autora do PL que determina funcionamento 24 horas de delegacias da mulher em SP

“Se as delegacias ficassem abertas 24 horas, poderíamos ter resultados melhores no que diz respeito à redução da violência, não só dos feminicídios, mas de qualquer tipo de agressão”, disse Sahão à Gênero e Número. “Se pudéssemos ter políticas que atuassem de forma mais consistentes e ininterruptas, ganharíamos muito, principalmente as mulheres que sofrem violência.”

Doria também afirmou que a Secretária de Segurança Pública do Estado “esclareceu ser inviável o aumento do número de servidores de todas as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher no Estado de São Paulo” e apontou ser “indispensável” a análise de “dados populacionais, o movimento policial e o número de policiais civis em exercício nas Delegacias de Polícia e as estatísticas sobre as ocorrências de crimes praticados contra as mulheres” para a implementação do projeto de lei.

“O projeto não estipula que, de um dia para outro, todas as delegacias seriam 24 horas”, explicou Sahão. “Isso pode ser feito de maneira gradual e planejada, com base nas estatísticas, para entender quais regiões têm altos índices e devem ser priorizadas até chegar a todo o Estado.”

A deputada, que começa em 2019 seu segundo mandato na Alesp, afirmou que vai se articular com outros parlamentares para derrubar o veto do governador. “Espero contar com a sensibilidade dos outros deputados e deputadas que assumiram o mandato nesta legislatura. Não vamos desistir.”

Falta de profissionais e de capacitação adequada são barreiras para a implementação do atendimento 24 horas nas delegacias da mulher | Foto: Divulgação / Governo de São Paulo

Depois do veto e da controvérsia, o governo de São Paulo prometeu inaugurar três DDMs com atendimento 24 horas por dia até o fim de fevereiro. Além da delegacia de Sorocaba, as outras unidades estão planejadas em Santos e na zona norte da capital.

O atendimento ininterrupto das DDMs no Estado é uma reivindicação da sociedade civil pelo menos desde 2016. Naquele ano, a ONG Minha Sampa apresentou uma petição que recolheu 20 mil assinaturas pedindo que a unidade da região Sé, no centro da capital, ampliasse seu horário de atendimento. A mobilização deu resultado e em 2016 a 1a DDM se tornou a primeira no Estado com funcionamento 24 horas.

Após o veto de Doria em 11 de janeiro, a Minha Sampa lançou, em parceria com outras organizações, a campanha Violência Não tem Hora, cobrando uma resposta do governador sobre a proposta das DDMs 24 horas. Até o fechamento desta reportagem, a campanha já havia reunido 30 mil apoiadores.

“A campanha surgiu para pedir com urgência a apresentação de uma proposta concreta para que todas as 133 delegacias do Estados sejam 24 horas”, disse  à Gênero e Número Larissa Schmillevitch, coordenadora do Mapa do Acolhimento. A organização é uma das organizações responsáveis pela campanha e realizou um mapa colaborativo de serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência em todo o país. Schmillevitch ainda destaca que a campanha pede, além do funcionamento 24 horas das delegacias, que o atendimento seja humanizado e capacitado.

Falta de profissionais e de capacitação

Após o governo Doria anunciar a abertura de novos plantões 24 horas das DDMs do Estado, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) enviou na última segunda-feira (28/01) ao delegado geral da Polícia Civil paulista um ofício expondo as preocupações e críticas da entidade ao modelo.

“Elogiamos e queremos que mais delegacias das mulheres sejam implementadas e abertas, mas com noção da realidade”, disse Raquel Kobashi Gallinati, delegada e presidente do SindPesp, à Gênero e Número. “Não adianta abrir uma delegacia da mulher e não ter policial para trabalhar ali. Precisamos de mais contratações. Não adianta tirar delegadas e policiais de uma delegacia que já está com déficit para colocar em outra. É uma conta que não fecha”, afirmou, alegando que existe um “um déficit que supera 13.500 policiais” no Estado.

Para a delegada, a ampliação do atendimento das delegacias da mulher deve ser acompanhada por mais contratações e pela valorização dos profissionais. “Não podemos sacrificar os policiais para cumprir uma bandeira eleitoreira. Não se deve cometer injustiça dentro de uma instituição. Temos que proteger a sociedade e dar atendimento especializado, mas não podemos nos esquecer dos profissionais que integram a instituição e que estão sendo prejudicados”, argumenta.

Coordenadora-auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo, a defensora Paula Santana Machado de Souza avalia que o debate sobre políticas públicas relacionadas à violência contra mulheres é recente no Brasil, o que se conecta ao escasso número de delegacias especializadas pelo país.

“As mulheres sempre sofreram violência, mas a discussão sobre políticas públicas no Brasil sobre isso ainda é muito recente. Acredito que um dos pilares para não termos um número suficiente de delegacias é porque discutimos isso como política pública há pouco tempo”, disse Souza à Gênero e Número.

A parca representação política das mulheres também estaria relacionada à falta de unidades e de profissional capacitado para atender a demanda, acredita a defensora. “Na política partidária ainda não temos tantas mulheres como representantes. Quem faz a política ainda são os homens, e muitas vezes esses homens não trazem para o campo da política, apesar de ser um dever deles, o combate à violência contra mulheres e todos os serviços necessários.”

Ela defende a expansão do serviço com a criação de novas delegacias da mulher, mas também a estruturação e capacitação das delegacias para que um melhor atendimento seja viável. “O atendimento humanizado e capacitado é tão importante quanto o atendimento 24 horas, de modo que a mulher seja atendida integralmente pela delegacia da mulher como recomenda a Lei Maria da Penha e o Protocolo Único de Atendimento”, estabelecido pelo governo de São Paulo em janeiro de 2017.

“Esperamos que aumentar a atuação da delegacia para 24 horas não se resuma a fazer o Boletim de Ocorrência ou a um atendimento não capacitado”, observou a defensora. “As pessoas que atuam nas delegacias precisam ser capacitadas, conhecer o ciclo da violência e compreender que desburocratizar o que for possível é nossa função, para termos uma execução melhor da lei e darmos todos os encaminhamentos necessários.”

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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