No final de abril, Sara Winter, recém nomeada uma das coordenadoras do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, revelou que pretende acabar com as discussões sobre educação sexual e substituí-las por “educação afetiva”. A fala de Winter, responsável pelas políticas de maternidade na pasta, se relaciona com um dos principais problemas apontados pelos dados do Dossiê Mulher, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro esta semana. No estado, 70% das vítimas de estupro em 2018 eram crianças e adolescentes com até 17 anos. A principal política apontada por pesquisadores para ajudar a combater esse fenômeno é justamente a educação sexual, que Winter pretende combater.
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Os dados do Dossiê Mulher apontam que o perfil das vítimas de estupro menores de idade não mudou nos últimos anos: a maioria é negra, mora fora da capital fluminense e teve como principal algoz pessoas desconhecidas, seguidas de familiares. Entre as mulheres com mais de 18 anos, o perfil muda ligeiramente: companheiros e ex-companheiros são os principais responsáveis pelo crime, atrás de desconhecidos. E sendo a vítima maior ou menor de idade, os lugares onde há menos registros de estupros são o ambiente escolar ou de trabalho.
Enquanto as violações contra crianças de até 10 anos foram praticadas 11 vezes dentro do ambiente escolar, foram cometidas pelo menos 376 por pai/mãe, padrasto/madrasta para crianças da mesma idade no estado do Rio de Janeiro.
A comparação entre o número de crimes no ambiente familiar e dentro de unidades de ensino é um dos principais argumentos para se fortalecer a educação sexual. Esta é a análise de Tamara Gonçalves, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) no Brasil. Ela avalia que a casa não é mais um lugar unanimemente seguro.
“A escola é um espaço alternativo à casa, que pode ser um local de violência. Um dos grandes ganhos do movimento feminista foi mostrar que a casa não é sempre um lugar seguro para as mulheres e que o ambiente familiar pode não ser seguro para as crianças também. Então, a escola acaba sendo esse porto seguro, onde violências podem ser relatadas e medidas podem ser tomadas”, analisa.
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Gonçalves observa que além de uma cruzada contra a educação sexual nas escolas, o crescente debate contra a “ideologia de gênero” também contribui para a manutenção de dados como os expostos pelo Dossiê Mulher.
“Se você silencia esse espaço e o debate [sobre gênero], não há política [de combate ao crime], porque se perde a oportunidade de desvendar as múltiplas violências a que a criança está submetida. A criança não vai saber o que é violência. Talvez futuramente ela processe aquilo, mas já gerou um trauma, já afetou a vida dela, já criou questões em relação a sexualidade e autoestima, e não houve punição ao agressor nem apoio. O conceito de gênero vem sendo distorcido nos debates públicos. As pessoas não sabem o que é e ainda assim lutam contra”, observa a pesquisadora.