Entrevista: “O coronavírus não tem nada de democrático. Ele tem ‘preferências’, e os negros são um dos grupos preferidos dele”

Coordenadora da ONG Criola, Lúcia Xavier reafirma a importância da divulgação dos dados de raça/cor na pandemia para que que se possa cobrar políticas públicas para a população negra

Por Sanny Bertoldo*

Relações precárias de trabalho e comunicação falha sobre o coronavírus são problemas enfrentados pela população negra na pandemia| Foto: Fotos Públicas

Quando foi declarada a transmissão comunitária do coronavírus no Brasil, no dia 20 de março, deixando de circular majoritariamente entre a elite branca e avançando para favelas e áreas periféricas, a população negra se tornou mais vulnerável. O efeito da disseminação do vírus entre esta parcela da população, no entanto, demorou a se tornar público. Só depois  que a Coalizão Negra por Direitos e outras instituições entraram com pedido, via Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Saúde inseriu o recorte de raça/cor na análise da pandemia. 

Os primeiros dados, divulgados no dia 10 de abril, revelaram que a covid-19 é mais letal para pretos e pardos, que representam quase 1 em cada 4 brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,9%), mas chegam a 1 em cada 3 entre os mortos (34,3%). “Mesmo com o mínimo de coleta dos dados, há a percepção de que negros vão morrer mais”, alerta a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, uma das 150 organizações que integram a Coalizão Negra por Direitos.

Em entrevista à Gênero e Número, Xavier ressalta a importância de um discurso claro sobre a gravidade do coronavírus para as populações periféricas, lembra que as pessoas mais vulneráveis não contam com o governo para resolver seus problemas e compara os efeitos da pandemia ao do furacão Katrina, que devastou Nova Orleans (EUA) em 2005: “A população negra vai sair devastada neste processo. Com muitos problemas de saúde, muitos problemas econômicos, muitos problemas de discriminação e violência, muito próximo a esse efeito de uma intempérie ambiental”.

O Ministério da Saúde incluiu os indicadores de raça/cor no boletim divulgado sobre a pandemia de coronavírus após pressão da Coalizão Negra por Direitos e outras organizações. Por que foi necessário esse movimento para que estes dados fossem disponibilizados?

Esses dados já estavam no sistema, mas não apareciam em lugar nenhum. Eles acham que esta informação não é relevante há muito tempo, e agora, neste governo, que não gosta de tratar das condições da população negra, ficou pior. Então, você vai vendo que, tanto nos informes do Ministério da Saúde como no de outros, esses dados mais qualificados, em torno de grupos como população negra, indígenas, vão desaparecendo. E passa por quem capta a primeira informação, por quem analisa os dados e constrói os painéis de informação e pelas próprias instituições, que não exigem uma coleta refinada desses dados. É claro que o quesito raça/cor não é o único, mas você vê que há uma tendência em dizer que a população não gosta de ser inquirida sobre raça/cor, que se sente ofendida, que esse dado não serve para muita coisa. Se não for obrigatório ser preenchido, as pessoas pulam ou definem elas mesmas a raça/cor das outras. E mesmo com o mínimo de coleta dos dados, há a percepção de que negros vão morrer mais. Agora estamos monitorando como o Estado está se comportando em relação à coleta desses quesitos, perguntando por que tem tantos dados ignorados, qual foi o problema para que isso acontecesse. Depois, há uma articulação entre pesquisadores e organizações da sociedade civil querendo pressionar o governo para ter os dados em todos os boletins publicados pelo governo.

E no que o desmembramento destes dados é útil para o enfrentamento da pandemia?  

Nós precisamos ter um painel da nossa realidade e precisamos ficar muito atentos aos dados. Eles não vão necessariamente revelar os efeitos da pandemia, mas já mostram que está havendo um descuido na coleta da informação, e isso, claro, vai produzir um mascaramento da situação. E precisamos levar em consideração que há problemas no serviço de saúde. A população negra recorre basicamente ao SUS. E se o SUS não oferece a ela informações relevantes, não sabemos como está pensando a política para controlar a epidemia nessa população. Como é que a gente controla os processos para que essas vidas sejam preservadas?

E ainda tem a dificuldade de manter as pessoas em casa. Como conseguir fazer isso? 

A população negra continua circulando nos bairros periféricos. Acho que tem duas questões: a primeira é regular melhor a comunicação com esses grupos. De fato, as pessoas não compreenderam bem o significado da epidemia, e aí existe uma questão importante que é o entendimento sobre isso. Elas têm necessidade de trabalhar, sabem que, se não trabalharem, não vão ter o que comer, sabem que esse processo não pode ser interrompido. Então, abrem mão de qualquer outra coisa e seguem para o trabalho. Isso é sério porque essas cidades são essencialmente dormitórios, as pessoas vão para o centro do Rio de Janeiro para trabalhar. Estamos falando de vários tipos de trabalhadores, entres eles, aqueles que têm um contrato precário ou relações precárias de trabalho. Outra questão da comunicação é que diferentes mensagens chegam para a população: do presidente, do governador, do prefeito. Caxias é um caso bem emblemático. Lá estava tudo aberto, tudo funcionando. E o prefeito foi contaminado com o coronavírus. Também há áreas em que alguns serviços sumiram, e isso vai causar impacto nas pessoas, que vão tomando outras atitudes. Então, a pessoa não sabe bem quem segue, se fica em casa, como manda o ministro da Saúde, se sai, como diz o presidente, se vai para a igreja, como diz o prefeito. É um problema se a cada dia cria-se uma ideia de que não existe a pandemia para esse grupo. 

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Como manejar as condições para diminuir o impacto da pandemia nas populações mais pobres? Só vai diminuir se as autoridades pararem de olhar isso como fato dado, uma coisa que não pode ser modificada e tampouco faz parte de suas responsabilidades.

As pessoas não confiam que os governos podem apontar o caminho para sair dessa crise?

Não. Por isso que essa população enfrenta a pandemia achando que é mais um problema. Ela está há tanto tempo resolvendo seus próprios problemas ou deixando para lá os que não podem ser resolvidos, que acabam tomando medidas por sua própria conta. A pessoa sabe que não vai ter auxílio, então, sai para trabalhar. E se não sair para trabalhar, tem certeza que nada vai chegar para ela. Esse é o nosso drama. Como manejar as condições para diminuir o impacto da pandemia nas populações mais pobres? Só vai diminuir se as autoridades pararem de olhar isso como fato dado, uma coisa que não pode ser modificada e tampouco faz parte de suas responsabilidades.  Se a gente não fizer denúncias e não gritar que esses governos têm capacidade para solucionar os problemas, eles vão deixar passar medidas simples que podem tomar desde agora. Tá bom, não tem como fazer saneamento básico agora, mas se eu não penso como estruturar serviços para atender a essa população, é a mesma coisa de dizer “ó, sinto muito, vocês vão morrer”. Não posso pensar que o que se tem agora não pode ser modificado porque a situação não é perfeita. 

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Então, quando você vê alguém dizendo “eu tive coronavírus e estou aqui”, será que isso vai ser a regra para a população negra? Nós não temos a dimensão do impacto do coronavírus entre nós, não temos noção de quanto vai durar.

Os primeiros dados de raça/cor na pandemia foram divulgados nos Estados Unidos e mostraram que, lá, o coronavírus mata mais negros. Aqui, o primeiro boletim do Ministério da Saúde indicou que, proporcionalmente, há mais negros do que brancos morrendo de Covid-19. Estamos falando de realidades semelhantes, de um denominador comum?

Acho que sim. O primeiro denominador comum é ser negro. O fato de serem negros já constrói para eles pontes de semelhanças muito profundas. São os mais pobres entre os pobres, vivem em situação de vulnerabilidade, estão em processo de violência em vários sentidos, tanto estrutural quanto individual e familiar, não têm poder de tomada de decisão. Em que pese os EUA serem muito diferentes do Brasil em termos da participação dos negros na política, no nosso caso ainda é pior, lá os profissionais de saúde que são infectados são enfermeiros, técnicos, etc, e o mesmo vai ocorrer aqui, são pessoas mais pobres, e, mais do que isso, a discriminação que essas pessoas sofrem ao acessar o sistema de saúde é semelhante ao que acontece aqui. Porque aqui nós temos um sistema único, gratuito, o que não é a realidade de lá, mas de certa maneira a dificuldade de acessar esse serviço acaba sendo semelhante. Aqui pela discriminação, lá pela falta de recurso financeiro. Tanto que quando esse dado surge na epidemia nos Estados Unidos, a primeira coisa que se faz aqui é reagir e dizer “não, aqui a epidemia ainda não chegou à população negra”. Claro que chegou, mas se os dados não são coletados com precisão, a gente não vai saber qual é a extensão da pandemia entre nós. Então, eu vejo muita semelhança, e vejo inclusive que, em termos de futuro, é bem parecido. Eu teria uma figura de linguagem para isso: é um furacão Katrina. Depois que passou, a população negra daquela região saiu em piores condições, e é mais ou menos isso que eu percebo que vai acontecer com a população negra do Brasil. A população negra vai sair devastada neste processo. Com muitos problemas de saúde, muitos problemas econômicos, muitos problemas de discriminação e violência, muito próximo a esse efeito de uma intempérie ambiental, como se a gente não conseguisse dar conta dessa dinâmica no futuro.

Desde o início, existe um discurso de que o coronavírus é “democrático”, no sentido de que não escolhe vítima, deixando todos indiscriminadamente vulneráveis. Diante dos dados da pandemia na população negra, é possível manter essa percepção? 

Ele não tem nada de democrático. Aliás, ele tem “preferências”. E os negros são um dos grupos preferidos dele. Se não está conosco agora a maior carga da pandemia, ela gosta sim de gente hipertensa, a maioria negra; gente diabética, a maioria negra; gente que não tem condição de se higienizar, a maioria negra, né? É claro que se você olha o histórico da pandemia, tem essa sensação de que dá em rico e pobre, preto e branco, mulher e homem, mas na prática, o estrago… acho que o boletim revela um pouco isso, de quantos morrem, quantos se recuperam. E isso tem que estar no nosso radar, muitos não vão se recuperar da pandemia porque podem até não morrer, mas o que a gente está chamando de recuperação? Então, quando você vê alguém dizendo “eu tive coronavírus e estou aqui”, será que isso vai ser a regra para a população negra? Nós não temos a dimensão do impacto do coronavírus entre nós, não temos noção de quanto vai durar. É claro que olhando realidades mais homogêneas, você pode ter outras perspectivas, mas se pensa nos Estados Unidos, com o epicentro da pandemia em Nova York, você vê que o maior número de mortes acontece nos bairros negros, nos mais pobres, então, não sei como pode ser democrático.

*Sanny Bertoldo é editora da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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