ENTREVISTA: ‘É necessário tratarmos sobre feminismo, gênero, raça e sexualidade na formação de professores, sim’

Por Carolina de Assis*

Alunos e professora em Centro Educacional em Brasília. Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado

Quem diz isso é a educadora e professora Tânia Mara Cruz, especialista em relações de gênero e étnico-raciais no ambiente escolar. Graduada em História, Cruz tem mestrado pela Unicamp e doutorado e pós-doutorado pela USP em Educação e é professora no mestrado em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Em entrevista à Gênero e Número, ela fala sobre suas conclusões a partir de estudos sobre as relações de gênero e raça entre crianças nos espaços de ensino e também de sua atuação em projetos de formação de professores sobre o assunto. “Poderia haver uma discussão sobre essa temática em todos os cursos, como tema transversal, mas nas licenciaturas ela é, a meu ver, imprescindível”, diz a pesquisadora.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

GÊNERO E NÚMERO: De que maneira estereótipos ligados a diferentes gêneros, raças e sexualidades chegam às crianças no ambiente escolar? E como esses estereótipos se manifestam nas interações entre elas e afetam sua socialização neste ambiente?

Ao estudar crianças, carregamos a premissa de sujeito ativo. Gosto quando William Corsaro, um pesquisador norte-americano da sociologia da infância, afirma que as crianças produzem uma reprodução interpretativa. Elas imitam os adultos ao mesmo tempo em que questionam e selecionam, reinventando suas atitudes e valores a partir de suas necessidades e das possibilidades oferecidas a elas. Isso acontece desde pequenininhas nas redes familiares, nas creches, no contato com as mídias e depois nas escolas, e nesse momento incluo as redes sociais, que passam a ter papel chave junto à escola e à família. O ser humano nunca é passivo frente aos processos de interação.

O ambiente educativo, em todos os níveis da educação básica, mostra de modo ainda intenso o que poderíamos chamar de sexismo institucional, ainda que expresso de modo contraditório por seus “agentes” visto nem todos concordarem, ao menos intencionalmente, com qualquer discriminação baseada nesse tripé de raça, gênero e sexualidade. Há pesquisas em todos as faixas etárias que mostram que, se existem práticas discriminatórias nas escolas por parte de crianças, adolescentes e jovens (e elas existem), elas existem em maior grau entre professores e direção escolar. O que ocorre em boa parte do tempo é que as contradições presentes nas relações escolares, apesar de não serem diferentes das contradições sociais “fora da escola”, têm nos adultos da escola uma ação de poder, no sentido de organizar os espaços, definir o que podem ou não realizar ali dentro e, principalmente, fazer “vista grossa” a tudo o que ocorre fora das interações que visam diretamente a aprendizagem dos conteúdos formais.

No artigo “Espaço escolar e discriminação: significados de gênero e raça entre crianças”, você ressalta a agência das crianças ao falar em um processo ativo de aceitação e recusa delas perante o já dado socialmente. Como as crianças lidam com concepções de raça e gênero que recebem do mundo dos adultos?

A recepção nunca é passiva. Tempos atrás havia uma concepção nas pesquisas com crianças que defendia a ideia de que as crianças recebem e passam a imitar os adultos, sendo a escola reprodutora das desigualdades, de modo irrevogável e de cima para baixo. A ideia de agência, válida para as crianças e também para adultos, mostra a escola como um campo de disputas e não como um mero aparelho ideológico de Estado. A escola é tanto um espaço de disciplinarização de corpos e mentes quanto um espaço de crítica e rebeldia – ora um ou outro mais forte, já que este movimento está, de algum modo, sempre ligado ao contexto social crítico ou conservador pelo qual a sociedade esteja passando em determinado momento.

Eu diria que, felizmente, a hegemonia sexista da escola nem sempre é bem sucedida. Em minhas pesquisas com crianças estas revelam, muitas vezes, perceber a diferença entre a suas famílias de origem e a escola. Quando as famílias são mais abertas, elas agem de modo diferenciado na escola, seguem as filas e demais regras (implícitas ou explícitas) da diferenciação entre meninas e meninos, mas em casa brincam sem as amarras de brincadeiras ou atitudes “só de menino ou só de menina”. O contrário também ocorre, porque a criança confia na professora contando suas histórias ou se expressando de modo mais livre e pede sigilo em relação à sua família. Mas falar da agência infantil não significa relativizar o papel da escola. Ela pode ser decisiva para muitas crianças.

Tânia Mara Cruz: 'racismo nas escolas é tão ou mais forte do que o sexismo' (Foto: arquivo pessoal)

No mesmo artigo, você fala sobre o racismo provocar um sofrimento mais introspectivo nas crianças, e esse fator seria um impedimento à denúncia. Como o racismo e o machismo afetam particularmente as meninas negras no ambiente escolar?

O sofrimento introspectivo tem a ver com a ideia de se ver ou não como criança negra, ora optando pelas nuances de cor para suavizar a autoestima em uma sociedade desvalorizadora da negritude (se descrevem como “café com leite”, “morena”); não saber como fazer para mudar isso [o racismo] porque ocorre nas relações longe dos olhares docentes e até mesmo fora da sala de aula, mas perceber sempre a prática racista.

O racismo nas escolas é tão ou mais forte do que o sexismo, mas é um racismo à brasileira. Como nos relata Antônio Guimarães, um sociólogo estudioso do racismo social, no Brasil tudo parece bem até que surja uma situação de conflito; aí lá estarão insultos e outras agressões raciais. Isso não é diferente entre as crianças, mas passa ao largo dos olhares docentes. As crianças estão lá, brincando, mas quando brigam… Como analisei no artigo, as meninas brancas amigas das meninas negras igualmente praticam o racismo e só às vezes recebem de volta um insulto como “branca azeda”, por exemplo, cuja conotação nem de longe tem o potencial agressivo de “canhão”, “bombril”, “maria-homem”, pela discriminação baseada numa estética dominante branca.

Em boa parte das discriminações, salvo brigas passageiras entremeadas com os tais insultos, são os meninos brancos os principais agentes. Também nesse artigo reflito sobre as estratégias das meninas negras, que podem usar o futebol como habilidade de aproximação com eles ou se distanciar deles para evitar problemas. Mesmo as meninas negras consideradas bonitas por eles podem ser agredidas se não corresponderem.

O papel dos meninos negros é bem ambíguo, como não entrar [nas brigas] para evitar cair [o racismo] sobre si, praticar também o sexismo ou se abster.

Pensando especificamente sobre os meninos, como concepções de masculinidade se manifestam entre eles dentro do ambiente escolar? E de que maneira podem determinar sua socialização neste espaço?

Os meninos negros, por exemplo, são os que mais sofrem com a ideia de que não são bons nos estudos, como mostram as pesquisas da educadora Marília Pinto de Carvalho sobre as séries iniciais. E aí cruzamos com classe, claro. Meninos pobres e negros são vistos como mais bagunceiros. Avançando para outros níveis, o ensino médio público, por exemplo, tem maior abandono de meninos porque estes estão mais ligados ao mundo do trabalho ou da violência, em uma trajetória de masculinidades agressivas em que os caminhos da escola costumam se tornar árduos nesse contexto.

De que maneiras professoras e professores e membros da coordenação escolar podem atuar junto às crianças para desconstruir preconceitos e fomentar concepções de gênero, raça e sexualidade livres de estereótipos?

Evitando prescrições, porque mais importante do que o “como” é que os espaços de educação infantil e escolares comecem a “ver” as necessidades de crianças, adolescentes e jovens e a permitir a expressão dessas necessidades ligando-as dentro da escola com a ideia de direitos humanos, em defesa da igualdade de oportunidades e livre expressão. Há muitas formas de se trabalhar a questão de gênero e raça no cotidiano escolar, para além das datas comemorativas como dia da mulher ou da consciência negra, que são importantes, mas não podem ser a caixinha criada para a discussão.

Seria possível pensar temas integrados em que estes recortes estariam presentes nas leituras e produção de textos escritos e imagéticos, no conhecimento histórico, na arte, nas oficinas com brinquedos, nas reflexões sobre o trabalho humano na sociedade e na família, na reflexão sobre a violência contra mulheres adultas e crianças. Sobre a sexualidade, as crianças gostam muito de caixinhas de perguntas e livrinhos de histórias ou apenas espaços para conversar entre si sobre afetos e outras dúvidas. As crianças trocam muitas informações e a professora imagina que ela é a detentora do saber… Se você permitir que as crianças conversem livremente entre si em um espaço seguro, elas já estarão bem felizes.

Você participa de projetos de formação para professores da educação básica sobre feminismo, gênero e sexualidade. Você acha que essa formação deveria ser incorporada ao currículo de professores desde a universidade?

Sobre isso não tenho qualquer dúvida. É necessário tratarmos sobre feminismo, gênero, raça e sexualidade na formação de professores, sim. Penso que poderia haver uma discussão sobre essa temática em todos os cursos, como tema transversal, mas nas licenciaturas ela é, a meu ver, imprescindível.

Em minha experiência como professora nos cursos de Pedagogia e História da Unisul (SC) – uma das poucas universidades do Brasil que tem a disciplina sobre relações de gênero e educação como obrigatória no currículo de Pedagogia e História desde 2013 e no Mestrado em Educação desde 2012 – verifico a necessidade dessa discussão e a aceitação por parte de estudantes. Mas observo que, semelhante ao que ocorre nas formações que realizamos nas escolas, apesar da curiosidade sobre a sexualidade humana e dentro dela a questão LGBT, essas parecem de difícil implementação imediata por parte dos estudantes das licenciaturas, principalmente pelo temor à família. Ainda são as questões gerais de gênero que têm tido maior aceitação e possibilidade de intervenção escolar. Temos pensado também que há a necessidade de vinculação, de alguma forma, aos estágios nas escolas como espaços de experiências nessa temática para que haja uma apropriação desses conhecimentos. Vamos incluir a proposição de direitos humanos [no currículo], tendo em conta nossos tempos tão intransitivos e de contenção da liberdade docente.

*Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.

Mais sobre Política 2018: https://www.generonumero.media/edicao-09

Contato: https://www.generonumero.media/fale-conosco/

 

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais