“Não é sobre ideologia política ou partido. Foi um feminicídio político”

Em entrevista à Gênero e Número, ela fala sobre o uso indevido da imagem de Marielle Franco, prega diálogo entre direita e esquerda e critica falta de espaço para mulheres negras nos partidos considerados progressistas

Vitória Régia da Silva*

Família de Marielle Franco durante a inauguração da Casa Marielle, no Rio de Janeiro | Foto: Mayara Donaria

Em um domingo chuvoso, mais de 7 mil pessoas passaram pela inauguração da Casa Marielle Franco, no Centro do Rio de Janeiro. Quando a reportagem da Gênero e Número chegou ao local, todos entoavam “Brasil, chegou a vez/De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”, o enredo “História Pra Ninar Gente Grande” da Mangueira, que homenageou a vereadora e venceu o Carnaval do Rio de Janeiro em 2019. A Casa, que vai ficar aberta durante todo o mês de março, conta com uma exposição permanente sobre a história de Marielle Franco. A inauguração ocorreu duas semanas antes do aniversário de dois anos do assassinato da vereadora e do seu motorista, Anderson Gomes. 

Durante a abertura da Casa, Anielle Franco, irmã de Marielle e diretora do Instituto Marielle Franco, tratou da esperança que move a busca por respostas, seu incômodo com o uso indevido da imagem de Marielle e seus planos para o Instituto: “Eu tenho um sonho: fazer com que as pessoas de direita, esquerda e centro consigam dialogar dentro do Instituto Marielle Franco. Porque a principal dificuldade hoje é fazer com que entendam que não é sobre ideologia política ou partido. Foi um feminicídio político”.

Confira trechos da entrevista a seguir:

Gênero e Número: Por que você e sua família decidiram criar o Instituto Marielle Franco?

Quando assassinaram a Marielle, estávamos sendo procurados com diversas finalidades. Pelo Ministério Público, para fazer palestras, para apoiar candidaturas… Naquele momento, percebi que precisávamos ter um meio de concentrar isso de alguma forma, porque achava importante. Além das fake news, havia algo muito contraditório falado sobre nossa família, mas nunca era a família que estava falando. Eu juntei toda a família, como meus pais, a Mônica Benício e a Luyara [viúva e filha de Marielle, respectivamente] para apresentar essa ideia, que inicialmente era de fazer um projeto voltado para educação na Maré [favela onde Marielle nasceu e foi criada]. Eu não tinha ideia de que poderia se tornar isso. Conversando com mulheres negras da área, como Lúcia Xavier [coordenadora da ONG Criola], me falaram que eu teria condições de fazer algo maior e comecei a pensar nisso. Depois de um ano pensando e desenvolvendo, cheguei a quatro pilares: justiça, memória, legado e sementes. 

Eu tenho um sonho: fazer com que as pessoas de direita, esquerda e centro consigam dialogar dentro do Instituto Marielle Franco. Porque a principal dificuldade hoje é fazer com que entendam que não é ideologia política, não é partido, não é isso. Foi um feminicídio político. Acredito que o Instituto tem condições de reunir todo mundo, fazer esse debate e dialogar. O objetivo é não deixar a memória da Mari morrer, porque temos um país com memória fraca.

Gênero e Número: O Instituto está realizando um financiamento coletivo e uma das primeiras ações garantidas foi a inauguração da Casa Marielle. Qual a sensação de ver a Casa acontecendo?

Em cinco dias de campanha conseguimos levantar 18 mil reais. Eu não acreditava que íamos conseguir alcançar tanta gente, porque era uma coisa tão pequena. Me emociona estar aqui hoje. Não é fácil. Temos sido alvo de críticas, de desafetos e descoberto pessoas próximas e não tão próximas que falam mal ou tentam lucrar com a imagem da Mari. Para mim, ainda é muito difícil, como irmã e família, ter jogo de cintura. Eu admiro muito como ela [Marielle Franco] tinha esse jogo de cintura, porque ela já nasceu política. Apesar de tudo isso, já sinto que vencemos, porque em um domingo, chovendo, milhares de pessoas passaram pela Casa e muita gente doou para isso acontecer. É emocionante.

aspa

O objetivo é não deixar a memória da Mari morrer, porque temos um país com memória fraca.

Gênero e Número: Dia 14 de março se completam dois anos do assassinato de Marielle. Qual o balanço da busca pela justiça e pelos mandantes do crime nesse período?

Ao mesmo tempo em que seguimos esperançosos para que esse crime se resolva, nos deparamos com muitas incertezas. Quando as notícias e investigações apontam para um certo condomínio e há supostas acusações, mas ainda sem provas, é difícil para a família. A esperança é uma coisa que nunca perdemos. Eu durmo e acordo abrindo o Google e pensando que o telefone vai tocar e alguém vai trazer essa resposta. Porém, também sei que não é fácil. Chegamos a um ponto da investigação do qual a gente talvez não consiga passar durante um certo tempo.

Inauguração da Casa Marielle reuniu mais de 7 mil pessoas no Largo São Francisco da Prainha, no Rio de Janeiro| Foto: Mayara Donaria/Divulgação

Gênero e Número: Em entrevista à série “Potências Negras do Muro Pequeno” você disse que “Marielle representa várias causas, várias lutas e um único corpo”. O reconhecimento internacional da morte da Marielle e sua atuação têm dois lados. Como você lida com este reconhecimento, com as notícias falsas e o ódio que acaba recebendo por ele?

Desde que mataram a Mari, eu aprendi que autocuidado é primordial. Independente do que eu queria fazer, é importante me cuidar. Eu entendo que a Mari é muito gigante, vai além e transcende muita coisa, mas tem horas em que não damos conta de tudo. Tanto para o negativo quanto para o positivo, há horas em que precisamos recuar. Isso é difícil para mim, porque aprendi isso na marra. Eu sou mais do enfrentamento, de colocar o dedo na cara e mandar calar a boca, mas estou conseguindo ter um autocuidado maior do que já tinha em toda a minha vida.

Gênero e Número: Qual a importância dos movimentos de mulheres negras na sua trajetória e, principalmente, na sua vida após o assassinato de Marielle?

Eu tenho sérias questões quando as pessoas acham que todo o protagonismo tem que ser branco. E não porque eu ache que não deve haver protagonismo para pessoas brancas — tem um monte de fake news que falam que a família não se dá bem com a Mônica, por exemplo. Não é isso. A questão não é a Mônica. É muito mais fácil as pessoas criarem uma história fictícia em relação à família do que reconhecer que são racistas. Eu tenho um problema quando dizem que a Marielle é a “vereadora sapatão de esquerda”, como se fosse só isso. Quando eu digo isso, sou criticada e aplaudida ao mesmo tempo. Eu quero que incluam nesta definição que Marielle era uma mulher negra, mãe solteira e que já apanhou do marido, por exemplo. E ninguém fala isso. É como se a vida dela enquanto mulher bissexual não tivesse existido. E isso me incomoda, inclusive como bissexual também, porque isso é apagar uma luta para dar voz a outra. 

Quando as pessoas perguntam para a gente o que vamos fazer, eu acho que as mulheres negras entendem na pele o que é isso. Após o assassinato, eu comecei a sentir que em espaços brancos de candidaturas da esquerda, onde mulheres negras não têm protagonismo de fala, usavam a imagem da Marielle, e comecei a questionar isso. Eu aprendi muito com a Lúcia Xavier e com a Jurema Werneck [diretora da Anistia Internacional Brasil], duas mulheres negras que me pegaram no colo e me explicaram a real. O que está acontecendo é o que nós, mulheres negras, vivemos desde que nascemos. Mas eu não sabia falar isso da mesma forma que falo hoje. Há um ano atrás, eu não sabia, eu ia para a porrada. Entendi que é preciso aprender, ler e acreditar que enquanto lideranças partidárias não tiverem uma autocrítica sobre a questão racial, este debate não vai evoluir. E eu vou continuar falando, gostem ou não.

aspa

Após o assassinato, eu comecei a sentir que em espaços brancos de candidaturas da esquerda, onde mulheres negras não têm protagonismo de fala, usavam a imagem da Marielle, e comecei a questionar isso.

Gênero e Número: Você tem pretensão de concorrer a algum cargo? Ou pretende apoiar candidaturas de mulheres negras?

Eu não vou me candidatar a nenhum cargo este ano. Já bati esse martelo. Eu nunca descarto, porque não acho que devemos falar “nunca” para alguma coisa, mas hoje não. O Instituto não vai apoiar candidatas especificamente, mas vamos apoiar ideias e projetos.

Gênero e Número: Você escreveu a orelha do livro “Angela Davis – Uma Autobiografia”, da autora e ativista norte-americana, a convite da editora Boitempo. Ano passado, lançou na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) o livro “Cartas Para Marielle”, uma coletânea de desabafos, entrevistas para reportagens e lembranças da família Franco. Como foi o processo de se descobrir escritora? Essa escrita ajudou a lidar com o luto?

A escrita sempre fez parte da minha infância e adolescência com a Mari. Quando eu morava fora do país, eu me comunicava com ela por cartas e e-mail. Tenho essas coisas guardadas. É difícil de pegar para ver, mas eu tenho tudo. Esse foi um lugar em que nos declaramos muito não só uma para a outra, mas em que colocamos nossas dores. Eu nunca abri mão de escrever. Eu fiz faculdade de jornalismo e, embora não pratique hoje, tenho o lugar da escrita com muito carinho. A escrita é onde ganhamos voz, força e podemos dar voz a pessoas que provavelmente nunca conheceremos.  

Gênero e Número: O que move você a continuar se movimentando, falando e  construindo espaços para mulheres negras, jovens, e pessoas da periferia? O que pretende deixar como legado?

Eu sonho muito alto com isso, em fazer algo como Martin Luther King, que as pessoas olhassem e falassem: ‘olha o que ela faz pela sociedade’. Eu não queria que a Mari ficasse pautada apenas como política, porque ela era muito mais que isso, e queria também poder falar e divulgar isso no mundo inteiro. Eu só falo inglês hoje por causa da minha mãe e da Marielle, que foram para a feira vender sacolé e sapato. Espero muito que esse legado dê frutos para minha filha e meus netos. Um legado de luta social mesmo e não só política. Quero ajudar mulheres a acreditarem em si cada vez mais e a ajudarem outras minorias. Eu já estou feliz e satisfeita de ter conseguido criar o Instituto, de ter lançado a Casa Marielle com essa inauguração bombástica e de ter inspirados tantas meninas, que hoje me param na Maré. Vamos levar o legado de Marielle para frente. Quero escrever mais livros, continuar fazendo palestras e conseguir um espaço físico para o Instituto.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais