Virginia Woolf | Flickr: Laura Muller

Em 15 anos, palcos da Flip receberam apenas 25% de mulheres autoras

Pela primeira vez este ano, o evento de maior destaque no calendário literário nacional terá maioria feminina entre os convidados.

Por Natália Mazotte*

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  • Movimentos por mudanças

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  • Mulheres na Flip: veja as autoras presentes nas edições do evento

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Foram necessários 15 anos para que a prestigiosa Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) formasse uma programação composta, em sua maioria, por mulheres. Em todas as edições do evento, a cada quatro convidados, apenas um nome foi feminino. Este ano, serão 24 autoras e 22 autores nos palcos do evento, que acontece de 26 a 30 de julho.

A Flip de 2017 também amplia a diversidade de vozes negras, que historicamente foram representadas por menos de 5% dos palestrantes: 25 em um total de 569. Seis mulheres negras compõem as mesas desta edição, o dobro do apresentado em todas as 14 anteriores somadas.

Os números evidenciam um esforço ativo da atual curadora do evento, Joselia Aguiar, de colocar a diversidade no centro do debate literário, o que vem ganhando fôlego desde 2014. “Há três anos, essa discussão praticamente não existia. Se alguém falasse disso, falaria sozinho. E as explicações são conservadoras: historicamente há mais homens escrevendo, fatores extraliterários não devem influenciar a escolha de autores”, afirmou em entrevista à Gênero e Número.

Segunda mulher a assumir a curadoria da Flip, Josélia precisou realizar uma pesquisa mais extensa para conseguir trazer novos nomes à cena. “Se eu me restringisse ao que grandes editoras, críticos ou jornais recomendam, conseguiria finalizar minhas escolhas muito mais rapidamente. Há um trabalho maior de buscar diversidade, conhecer novas obras e ver como elas dialogam. Esse esforço hoje pra mim é totalmente justificável, acho que o programa fica mais interessante. Mas outras pessoas podem preferir destacar nomes que estão mais à mão.”

A representatividade proposta pela organizacão do evento este ano, de fato, demanda ir além do mainstream literário, ainda composto predominantemente por homens brancos. É o que revela um estudo coordenado por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB). Ao consultar 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco, a pesquisadora encontrou 94% de autores brancos, 73% deles homens, do Rio de Janeiro e de São Paulo (47% e 21%, respectivamente).

A pesquisa ainda investigou a representação dos personagens nos romances brasileiros, e os números não diferem muito do perfil dos autores: maioria masculina (62%) e branca (92%). Embora já tenham superado os homens como público leitor no país, as mulheres, especialmente as mulheres negras, se veem menos refletidas nas obras literárias.

A representatividade das mesas da Flip desde que foi criada, portanto, não deixa de ser espelho de um mercado editorial pouco paritário em termos de gênero e raça.

Veja também: Levantamento – Gênero e Raça na Flip

Raízes históricas

O aumento da presença de autoras em Paraty é celebrado pela escritora Beatriz Bracher, co-fundadora da Editora 34. Com seis obras publicadas e diversos prêmios de literatura, é uma das cinco mulheres que, em 15 anos de Flip, foram convidadas a regressar aos palcos. Na ala masculina, 45 autores estiveram no festival mais de uma vez. “Nesses espaços, ter mais mulheres é muito importante, isso incentiva meninas a se enxergarem como potenciais autoras”, afirma.

Beatriz, contudo, não atribui aos editores a responsabilidade por catálogos predominantemente masculinos. “Vejo por mim e por meus colegas, estamos atentos e interessados em ter paridade de gênero e diversidade étnica. Mas chegam pouquíssimos originais. Os levantamentos se concentram em mostrar o número de publicações, mas só quem está dentro sabe o perfil das pessoas que enviam suas produções a uma editora”.

A dificuldade de ampliar o número de mulheres na literatura tem raízes históricas e decorre de práticas machistas que não são exclusivas deste campo cultural. O livro “Profissões para mulheres e outros artigos feministas” compila ensaios e reflexões da renomada escritora inglesa Virginia Woolf, nos quais ela expõe os empecilhos que o fato de ser mulher gera para a carreira literária: a falta de acesso à educação, o tempo reduzido pela maternidade e pelos trabalhos domésticos, as chances desiguais de autonomia financeira em um mercado de trabalho dominado por homens.

“É mais complexo que culpabilizar um setor. Os desafios envolvem a formação das mulheres e começam muito antes delas alcançarem as Editoras. Primeiro precisam ter autoconfiança para se autorizarem a serem escritoras. Deveríamos nos preocupar em atuar nesse ponto, em criar espaços para encorajar mais mulheres a se verem autoras”, ressalta Beatriz.

A escritora Martha Lopes concorda que o acesso posterior das mulheres à educação e a falta de segurança para colocar o que escrevem no mundo façam parte do problema, mas não exime o mercado editorial, que frequentemente reforça estereótipos sobre a produção literária feminina. “As casas editoriais têm uma série de estigmas sobre o tipo de literatura que uma mulher deve produzir: deve ter sempre romantismo, delicadeza, temas que envolvam maternidade, questões domésticas. É importante repensar o que é a literatura feminina. É recorrente a ideia de que homens escrevem para o mundo e mulheres escrevem só para mulheres”, afirma.

Movimentos por mudanças

A discussão de gênero ganhou espaço na Flip em 2014, depois da divulgação de um programa que incluía apenas 7 mulheres entre 43 autores. Martha e a editora Laura Folgueira iniciaram uma campanha virtual com a hashtag #KDmulheres?” e organizaram rodas de conversa durante o evento. No ano seguinte, a participação feminina no festival dobrou, e em 2016, atingiu praticamente a paridade, mas as críticas ficaram por conta da ausência de escritoras negras. O curador da Flip em 2016, Paulo Werneck, reconheceu a falha.

O movimento “KDmulheres?” se tornou um portal que hoje abriga uma série de entrevistas com autoras nacionais que tiveram trabalho relevante e ficaram apagadas na história. Outras iniciativas também despontaram para jogar luz à literatura produzida por mulheres, como a newsletter “Mulheres que escrevem“, o blog “Veredas” e os clubes de leitura “Leia mulheres” e “Leia mulheres negras“.

“Fiquei muito satisfeita de ver a curadoria, e fez muita diferença colocar uma mulher como curadora, essa sensibilidade aparece. Mas a gente continua batendo no debate interseccional, ter mais mulheres negras, indígenas, e pluralizar cada vez mais essa programação. Tem muita coisa boa sendo produzida na cena independente”, conclui Martha.

Mulheres na Flip: veja as autoras presentes nas edições do evento

  1. 2017

    Adelaide Ivánova

    Deborah Levy

    Josely Vianna Baptista

    Natalia Borges Polesso

    Ana Maria Gonçalves

    Diamela Eltit

    Laura Maria dos Santos

    Niéde Guidon

    Ana Miranda

    Djaimilia Pereira de Almeida

    Leila Guerriero

    Noemi Jaffe

    Beatriz Resende

    Grace Passô

    Lilia Schwarcz

    Pilar del Río

    Carol Rodrigues

    Ivanildes Kerexu Pereira

    Luciana Hidalgo

    Prisca Agustoni

    Conceição Evaristo

    Joana Gorjão Henriques

    Maria Valéria Rezende

    Scholastique Mukasonga

  2. 2016

    Aline Abreu

    Gabriela Wiener

    Laura Liuzzi

    Patrícia Campos Mello

    Tati Bernardi

    Ana Luísa Lacombe

    Helen Macdonald

    Lúcia Leitão

    Paula Sibilia

    Valeria Luiselli

    Angela Lago

    Heloisa Buarque de Hollanda

    Maria Esther Maciel

    Roberta Estrela D’Alva

    Vilma Arêas

    Annita Costa Malufe

    Juliana Frank

    Marília Garcia

    Selma Maria

    Blandina & Lollo

    Kate Tempest

    Palavra Cantada

    Suzana Herculano-Houzel

    Eliane Potiguara

    Laura Castilhos

    Patricia Auerbach

    Svetlana Aleksiévitch

  3. 2015

    Alessandra Pontes Roscoe

    Eliane Robert Moraes

    Rita Carelli

    Alexandra Lucas Coelho

    Heloisa M. Starling

    Simone Matias

    Ana Luisa Escorel

    Karina Buhr

    Sophie Hannah

    Ayelet Waldman

    Katjusch Hœ

    Stella Maris Rezende

    Beatriz Sarlo

    Luciana Sandroni

    Diléa Frate

    Matilde Campilho

  4. 2014

    Claudia Andujar

    Graciela Mochkofsky

    Eleanor Catton

    Jhumpa Lahiri

    Eliane Brum

    Elif Batuman

    Fernanda Torres

    Diléa Frate

  5. 2013

    Alice Sant’Anna

    Lydia Davis

    Ana Martins Marques

    Maria Bethânia

    Bruna Beber

    Marina de Mello e Souza

    Cleonice Berardinelli

    Miúcha

    Jeanne-Marie Gagnebin

    Lila Azam Zanganeh

  6. 2012

    Dulce Maria Cardoso

    Zoé Valdés

    Jackie Kay

    Jennifer Egan

    Laerte Coutinho

    Paloma Vidal

    Silvia Castrillón

  7. 2011

    Carol Ann Duffy

    Kamila Shamsie

    Laura Restrepo

    Marcia Camargos

    Pola Oloixarac

  8. 2010

    Angela Alonso

    Pauline Melville

    Azar Nafisi

    Wendy Guerra

    Beatriz Bracher

    Carola Saavedra

    Isabel Allende

    Maria Lúcia P. Burke

  9. 2009

    Carol Ann Duffy

    Xinran

    Kamila Shamsie

    Catherine Millet

    Edna O’Brien

    Sophie Calle

    Tatiana Salem Levy

  10. 2008

    Adriana Lunardi

    Lucrecia Martel

    Ana Maria Machado

    Vanessa Barbara

    Chimamanda Ngozi Adichie

    Zoe Heller

    Cíntia Moscovich

    Elisabeth Roudinesco

    Inês Pedrosa

  11. 2007

    Ahdaf Soueif

    Kiran Desai

    Nadine Gordimer

  12. 2006

    Adélia Prado

    Astrid Cabral

    Lillian Ross

    Myriam Fraga

    Nicole Krauss

    Toni Morrison

  13. 2005

    Beatriz Bracher

    Vilma Arêas

    Beatriz Sarlo

    Claudia Roquette-Pinto

    Isabel Fonseca

    Jeanette Winterson

    Marina Colasanti

  14. 2004

    Adriana Lisboa

    Isabel Fonseca

    Lídia Jorge

    Lygia Fagundes Telles

    Margaret Atwood

    Rosa Montero

  15. 2003

    Adriana Falcão

    Ana Maria Machado

    Patrícia Melo

*Colaboraram Isis Reis e Vicky Régia.

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