Elas não se sentem livres

A Gênero e Número acompanhou relatos das rotinas de mulheres que se deslocam na região metropolitana do Rio para mostrar como assédios e intimidações ilustram dados de pesquisas recentes.

Por Amanda Prado*

  • Mulheres em todos os espaços

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  • Iluminação: é pouco, mas é muito

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Da porta de casa para fora, George Sand, pseudônimo da escritora Amandine Dupin, fingia ser um homem. Ao se vestir com trajes masculinos na Paris do século XIX, a romancista francesa sentia-se, enfim, livre para andar pelas ruas sem ser intimidada. No Brasil do século XXI, há milhares de Amandines. São mulheres que não se sentem livres para andar em qualquer lugar ou a qualquer hora. O assédio em espaços públicos acaba determinando como e onde elas escolhem circular.

Um levantamento da Action Aid sobre o tema, publicado em novembro de 2016, constatou que 86% das brasileiras entrevistadas tomam alguma providência para se proteger de abordagens indevidas. Dentre as medidas, estão: fazer um caminho diferente do usual (55%), evitar parques ou áreas mal iluminadas (52%), ligar ou enviar mensagem para alguém confirmando estar bem (48%), solicitar a companhia de outra pessoa (44%), evitar transporte público (17%) e desistir de ir a um evento social (18%).

Por uma semana, a Gênero e Número acompanhou relatos de duas mulheres de diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro. Para ambas, assim como para tantas outras mulheres, o assédio sofrido no espaço urbano não apenas é realidade diária, mas tem um efeito direto em seus padrões de mobilidade.

A jovem N.B, 19 anos, mora em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. No dia 16 de fevereiro, indo de casa até o metrô, desviou sua rota para passar mais longe de um bar, depois de já ter contabilizado cinco olhares intimidadores em seu trajeto. Ela diz evitar cumprimentar as pessoas desconhecidas ou ser mais gentil nas ruas. “Essa minha postura ocorre principalmente por conta do medo de assédio. Sinto medo de passar por bares, lanchonetes e oficinas pelo caminho até o ponto de ônibus”.

Quatro dias depois, em 20 de fevereiro, uma segunda-feira, ela relatou os assédios que costuma sofrer na passagem pela Feira da Pavuna, que fica próxima ao metrô que ela costuma pegar para ir à faculdade. “A maioria dos feirantes é homem. Recebo cantadas com frequência, e olhares todos os dias. Tem um ambulante que sempre ‘mexe’ comigo. Isso já aconteceu até mesmo ao lado da minha mãe. Toda vez que vou passar por ele na calçada, desvio. Todos os dias.”

A jovem L.P., 21 anos, mora no bairro do Flamengo e trabalha no Centro da cidade. No dia 16 de fevereiro pegou ônibus para ir ao trabalho, como faz cotidianamente. “Apesar de preferir sentar na janela, sempre tenho que sentar no corredor por medo de ficar encurralada caso algum homem sente ao meu lado e tenha más intenções”. Sobre o dia seguinte, 17 de fevereiro, ela relatou: “Fui ‘secada’ no ponto de ônibus por um cara que passava e ainda tive que ouvir um ‘você é gostosa, te amo’”.

No mesmo dia, à noite, a jovem tinha um aniversário na Tijuca. “Poderia ter ido de carro sozinha, mas voltar da Tijuca de madrugada, sendo mulher, é correr perigo sério, então tive que esperar um amigo meu que só iria bem mais tarde”. Em 20 de fevereiro, L.P desistiu de voltar de ônibus ao sair do trabalho. “Saí tarde e era perigoso demais andar até o ponto de ônibus, precisei pagar um táxi pra casa.”

 

 

As duas jovens não são casos isolados. O assédio em espaços públicos tem um efeito direto nos padrões de mobilidade das mulheres e atinge a grande maioria. Em uma pesquisa anterior da Action Aid sobre as situações em que mulheres sentiram mais medo de ser assediadas, 70% responderam que andar pelas ruas é uma delas. Entre as mulheres brasileiras ouvidas, 86% já sofreram assédio em público em suas cidades.

A pesquisa aponta ainda que a percepção do assédio de rua no Brasil é pior que na Índia, país marcado pela violência contra a mulher. Enquanto na Índia 79% dizem já ter sofrido assédio no espaço público, aqui os 86% não deixam dúvida de que é um desafio constante para as mulheres evitar situações em que podem ser alvo de assediadores. O mesmo percentual do Brasil foi registrado na Tailândia. Na Inglaterra, o número se aproxima da Índia, mas é um pouco mais baixo: 75%. A Action Aid ouviu 2.500 mulheres com idade acima de 16 anos nas principais cidades destes quatro países.

Para Glauce Arzua, coordenadora da campanha Cidades Seguras para as Mulheres no Brasil, da Action Aid, a violência e o assédio nos espaços públicos impedem as mulheres de quebrarem os ciclos de pobreza em que vivem, limitando seus acessos ao estudo e ao trabalho.

São muitos os movimentos que consideram que o debate sobre o espaço que a mulher ocupa na cidade vem crescendo nos últimos anos. A gerente de conteúdo da ONG Think Olga, Luise Bello, destaca a campanha digital “Chega de Fiu Fiu” como um exemplo de ampliação do debate sobre o assédio. “Muita gente dizia e ainda diz que é frescura e que as mulheres gostam. A campanha mostrou que o assédio é percebido de maneira negativa por nós e que isso afeta a nossa rotina. Precisamos mudar de roupa, trocar os caminhos para fazer o básico que é circular pelas ruas, se deslocar”, apontou.

Mulheres em todos os espaços

Historicamente, planejar a cidade para a mulher era garantir que o seu papel de dona de casa fosse  mais confortável. Mas o cenário mudou: a rua e o mercado, antes restritos aos homens, passaram a ser divididos com elas, que se integraram às relações de trabalho fora de casa. Essa dinâmica de deslocamento feminino para lugares mais distantes “do lar” começou a aumentar nas economias ocidentais a partir da década de 50 do século passado. No Brasil dos anos 70, a participação das mulheres no mercado ainda ficava em torno de 18%. Em 2002, esse número já atingia 50%, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Apesar da atual ocupação feminina do espaço público, as necessidades das mulheres ainda são pouco consideradas no planejamento das cidades.

Veja também: Maioria no transporte público, mulheres estão à margem das políticas de mobilidade

Para a engenheira civil Julia Vansetti, pesquisadora em Gestão e Desenvolvimento Urbano na Universidade Erasmus, na Holanda, a falta de mulheres liderando o planejamento urbano é uma das razões. “Se deficientes físicos não andam em determinadas ruas é porque as ruas não foram pensadas para eles. Da mesma forma, a ausência de mulheres em determinados locais ou horários significa que aqueles locais não foram pensados para elas”, diz.

Iluminação: é pouco, mas é muito

“Falando de espaço público, não temos como deixar de mencionar a iluminação, ou a falta dela, como um dos principais fatores que geram insegurança das mulheres. As ruas estreitas também, que indicam que você não tem para onde correr se for abordada e, claro, aqueles espaços que geram a sensação de que as pessoas não vão te ver caso algo aconteça, como árvores e bancas de jornal, que também propiciam o esconderijo de alguém que queira te fazer mal”, avalia Julia Vansetti.

Um estudo das universidades de Plymouth, na Inglaterra, e Groningen, na Holanda, de 2014, corrobora a avaliação da pesquisadora. Segundo ele, os níveis de iluminação eram aceitáveis quando o ambiente era percebido como seguro. A redução na Iluminação de rua não levou automaticamente a uma redução na percepção de segurança para todas as pessoas, isso também dependia do sexo e do nível da sensação de “enclausuramento”. “As ruas precisam ser projetadas do ponto de vista de seus usuários: as oportunidades de escapar em caso de um ataque precisam ser incluídas e isso é especialmente importante para as mulheres”, concluiu a pesquisa.

Amanda Prado é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

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