Domésticas envelhecem e desemprego e precarização aumentam entre mulheres jovens

Perfil de mulheres ocupadas na categoria envelhece mais que a média nacional, enquanto geração de filhas das trabalhadoras domésticas que chegaram à universidade cede espaço a jovens que se viram como podem

Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil: https://www.generonumero.media/tag/cenarios-e-possibilidades-da-pandemia-desigual-em-genero-e-raca-no-brasil/

Por Maria Martha Bruno e Flávia Bozza Martins*

  • "Estude. Não quero ver você no fundo da cozinha do branco"

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  • "Subempregos masculinos e femininos"

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  • Empreender por necessidade

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Na última década, proliferaram histórias de filhas e filhos de trabalhadoras domésticas que se tornaram as primeiras da família a ingressar em uma universidade. O assunto até virou tema do filme “Que horas ela volta?”, com Regina Casé, ilustrando uma geração que parecia haver deixado para trás a herança profissional de mães que encontraram no serviço doméstico seu sustento. Com cinco irmãs, a professora Juliana França (30 anos), filha de uma diarista de Japeri, município da Baixada Fluminense (RJ), é uma típica representante desta geração. Nem ela nem as irmãs seguiram o ofício da mãe. Mas com uma taxa de desemprego de 16,4% entre mulheres, a falta de trabalho afetou praticamente toda a família.

“De todas as minhas irmãs, apenas a mais nova, de 16 anos, está trabalhando, porque é jovem aprendiz. As outras estão desempregadas ou tentando empreender de alguma maneira. Uma delas abriu um bar no ano passado e está tentando se restabelecer por conta própria. Minha mãe está desempregada e, com a suspensão do Auxílio Emergencial, as coisas se complicaram ainda mais”, conta Juliana. 

A professora foi uma das entrevistadas para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, realizado pela Gênero e Número em parceria com o Instituto Ibirapitanga. O estudo deu origem a esta reportagem, a segunda sobre o trabalho doméstico.

Leia também: Segunda categoria mais beneficiada pelo auxílio emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de postos de trabalho

Trabalho doméstico por faixa etária e raça

Desigualdade de raça no envelhecimento: há mais jovens negras que jovens brancas na categoria

ADULTAS

JOVENS

IDOSAS

(16-29)

(30-59)

(60+)

BRANCA

8,7%

80,1%

11,3%

NEGRA

6,9%

14,3%

78,8%

Apoio

fonte PNAD 2018

Trabalho doméstico por faixa etária e raça

Desigualdade de raça no envelhecimento: há mais jovens negras que jovens brancas na categoria

JOVENS

(16-29)

ADULTAS

(30-59)

IDOSAS

(60+)

BRANCA

11,3%

8,7%

80,1%

NEGRA

6,9%

78,8%

14,3%

Apoio

fonte PNAD 2018

Números do IBGE mostram que a categoria das trabalhadoras domésticas está envelhecendo desde 1995 e diminuindo por causa do desemprego, enquanto jovens, mulheres e pessoas negras engrossam o contingente sem trabalho no Brasil. No fim de 2020, a população ocupada no setor doméstico havia caído 19,2%. Agora, elas são 5,05 milhões, contra 6,2 milhões no ano anterior. Por outro lado, a taxa de desemprego no Brasil é maior entre mulheres (16,4% x 11,9% de homens), jovens (42,7% para aqueles de até 17 anos e 30% de 18 a 24 anos) e pessoas negras (15,8% para pardos e 17,2% para pretos) —  para pessoas brancas a taxa é de 11,5%.  

“A proporção de mulheres idosas (com mais de 60 anos) na força de trabalho cresceu de forma muito mais intensa para as trabalhadoras domésticas do que para as mulheres ocupadas de forma geral. Enquanto para estas últimas, entre 1995 e 2018, a variação foi positiva, porém muito leve, para as domésticas, o peso das mais velhas mais do que dobrou, indo de 3% para mais de 7%”, destaca o estudo “Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base na Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar de 2018, do IBGE.

Taxa de desemprego no 4o trimestre de 2020 (%)

Mulheres, jovens e pessoas negras são as mais afetadas

Por gênero

Média anual em 2020

13,5%

MULHERES

16,4%

HOMENS

11,9%

BRASIL

13,9%

No 4° trimestre de 2020,

a taxa de desemprego

no Brasil foi de 13,9%

Por raça

PRETOS

17,2%

PARDOS

15,8%

BRANCOS

11,5%

BRASIL

13,9%

Por faixa etária

14 - 17

18 - 24

25 - 39

40 - 59

60+

5%

42,7%

29,8%

13,9%

9%

Apoio

fonte Pnad Contínua IBGE - 4o trimestre

Taxa de desemprego no 4o trimestre de 2020 (%)

Mulheres, jovens e pessoas negras são as mais afetadas

Por gênero

Média anual

em 2020

13,5%

MULHERES

16,4%

HOMENS

11,9%

BRASIL

13,9%

No 4° trimestre de 2020,

a taxa de desemprego

no Brasil foi de 13,9%

Por raça

PRETOS

17,2%

PARDOS

15,8%

BRANCOS

11,5%

BRASIL

13,9%

Por faixa etária

14 - 17

42,7%

18 - 24

29,8%

25 - 39

13,9%

40 - 59

9%

60+

5%

Apoio

fonte Pnad

Contínua IBGE -

4o trimestre

"Estude. Não quero ver você no fundo da cozinha do branco"

Aos 56 anos, a mãe de Juliana teve acesso ao Auxílio Emergencial em 2020 e, enquanto não trabalhou por causa da pandemia, recebeu o salário de apenas um de seus empregadores, após ser dispensada pelos demais em abril de 2020. Mãe solo, ela já recebia o Bolsa Família e complementava a renda de doméstica vendendo balas em festas, atividade suspensa por causa da crise sanitária.

As cinco irmãs de Juliana não seguiram o trabalho da mãe: a mais velha tem 40 anos e a mais nova, 16. “Todas foram incentivadas a estudar. Minha mãe não trata com nenhum demérito quem trabalha como doméstica, mas entende que o estudo é a melhor solução para a gente caminhar”, diz a professora.

 

Leia também: PEC das Domésticas completa 7 anos golpeada por empregadores, economia e coronavírus

 

O estudo do Ipea ressalta a ampliação do “acesso à escolaridade e a outras ocupações, a exemplo dos serviços de telemarketing”, como fatores que favoreceram esta mudança na faixa etária. São “postos de trabalho menos estigmatizados (mas não necessariamente menos precários)”, segundo o estudo. O período de envelhecimento das trabalhadoras domésticas (de 1995 a 2018) compreende o início da implementação das cotas raciais em universidades públicas (2003), bem como as políticas de financiamento de mensalidades em instituições de ensino superior particulares (Fies e Prouni, criados em 1999 e 2005, respectivamente). 

Este período também corresponde à geração da pesquisadora Daiane Oliveira, da Universidade Federal da Bahia. “A frase que mais lembro ouvir da minha mãe era: ‘Estude. Eu não posso te dar nada além de estudo e não quero ver você no fundo da cozinha do branco’”. Com bolsa de 50% do Prouni, ela entrou em uma das faculdades mais caras do estado, enquanto trabalhava como operadora de telemarketing e estagiava para pagar o restante, com a ajuda da mãe, trabalhadora doméstica. 

Trabalho doméstico por faixa etária

O envelhecimento drástico da classe coincide com o período de criação de políticas afirmativas nas universidades

1995

2018

JOVENS

46,9%

13,4%

(16-29)

ADULTAS

50,2%

79,2%

(30-59)

(60+)

IDOSAS

2,9%

7,4%

Apoio

fonte PNAD 2018

Trabalho doméstico por faixa etária

O envelhecimento drástico da classe coincide com o período de criação de políticas afirmativas nas universidades

1995

2018

JOVENS

46,9%

13,4%

(16-29)

ADULTAS

50,2%

79,2%

(30-59)

(60+)

IDOSAS

2,9%

7,4%

Apoio

fonte PNAD 2018

"Subempregos masculinos e femininos"

“A gente fica pulando de galho em galho por causa do mercado”. Luciana Kasai, de 26 anos, não é negra nem filha de doméstica. Por outro lado, foi criada sozinha pela mãe, vendedora de comércio, que chegou a ter quatro empregos diferentes durante a pandemia, em um dos setores mais afetados pela crise. Ela recorreu às entregas por aplicativo para se virar até o ano passado. Agora, dá aulas de inglês online em São Paulo. Ela virou uma das porta-vozes dos Entregadores Antifascistas em 2020. 

Formada em gastronomia, trabalhou muitos anos em cozinhas, mas as condições de trabalho e a carga horária, com folgas apenas às segundas-feiras, afetaram sua saúde mental. Internada por quase um ano, voltou ao mercado trabalhando em uma espécie de Uber de bicicletas na Avenida Faria Lima, centro financeiro da capital paulista: “Quando você tem que pagar suas contas e não tem outra opção, você vai fazer entrega. E foi o que eu fiz na pandemia”. 

 

Leia também: Na pandemia, mulheres ficam mais vulneráveis e são maioria entre desempregados

 

Segundo pesquisa da Aliança Bike, na cidade de São Paulo apenas 1% dos entregadores de bicicleta são mulheres. O número se alinha com dado do Ifood, que informou em julho de 2020 ao UOL que mulheres são 1,8% de seu contingente de 170 mil entregadores. A Uber não informa dados atualizados sobre a quantidade de motoristas mulheres, mas números de 2019 encontrados em publicações como Gizmodo e Exame mostram que, naquele ano, elas eram 6% do total de 600 mil condutores. 

A proporção é pequena, mas aponta a alternativa instável para mulheres jovens que preferem buscar outras opções além do trabalho doméstico. Diversas reportagens também já mostraram que a rotina para aquelas que estão neste mercado é mais dura que a de homens, pois inclui assédio e complicações extras para acessar banheiros, por exemplo.      

“Você tem que se masculinizar. Os patrões são homens, então não pode dar moral pra cara folgado, seja cliente, seja o cara do restaurante”, diz Luciana, sobre os meios de sobrevivência nas ruas. “Acho que tem pouca mulher na entrega, porque tem subempregos que são considerados masculinos, e subempregos femininos, como o trabalho doméstico”. Os números  da Alianza Bike mostram que o perfil preponderante dos entregadores são homens jovens negros.

Empreender por necessidade

Depois de quatro anos, Veronica Oliveira abandonou o serviço doméstico em março de 2020 e hoje fala sobre o ofício em palestras e materiais que produz para empresas. Depois de fazer postagens lúdicas para vender seus serviços domésticos, ela encontrou, a partir do ano passado, um novo trabalho na produção de conteúdo, a partir do perfil “Faxina Boa” nas redes sociais. Veronica não romantiza a trajetória empreendedora que a permitiu sair do trabalho doméstico, enquanto reconhece o esforço mal recompensado de mulheres que estão no segmento há décadas: 

Veronica Oliveira se tornou produtora de conteúdo depois que seus posts sobre faxina viralizaram - Foto: Reprodução Instagram

“Empreender por necessidade é muito diferente. Foi um processo muito difícil para mim. Tenho muitas amigas que começaram a empreender. Criaram negócios próprios de turismo, cosméticos e alimentação. E hoje acompanho as dificuldades que elas passam (…) Se fosse apenas uma questão de esforço, se meritocracia funcionasse, não haveria essas senhoras trabalhando há 30 anos e ganhando um salário mínimo”.

Eleutéria Amora, fundadora da Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra), organização feminista que atua na promoção de direitos e autonomia das mulheres, reivindica uma política de renda associada ao estímulo à criação de empregos para mulheres jovens. E aponta as falhas na saída “empreendedora” oferecida pelo mercado: “Agora elas até têm o estudo, mas não têm a perspectiva do trabalho. Empreender é uma falácia. É um arranjo para ganhar uma grana pontual. Claro que tem uma pessoa ou outra que se sobressai. Mas aquilo não se mantém”. 

Suane Soares, assessora técnica da Camtra, ilustra alguns destes empecilhos: “Vemos trabalhadoras vendendo por comissão, pela internet. São mulheres precarizadas, que não têm acesso a computador, só a um celular de baixa qualidade e vendem tudo o que se pode imaginar, para conseguir tirar uma porcentagem. Elas não têm mais salário, passam o dia todo no celular vendendo comida, trabalhos à mão, e no fim do mês não tiram nem R$ 600”.

*Maria Martha Bruno é diretora de conteúdo e Flávia Bozza Martins é analista da Gênero e Número

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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