Carolina Araújo, única mulher no quadro de pesquisadores permanentes do renomado IMPA | Foto: Divulgação/IMPA

Com comitês de gênero, matemáticas brasileiras ganham força e estreiam em congresso centenário

Elas são apenas 10% dos pesquisadores da área contemplados por bolsas de produtividade, a categoria regular mais alta do CNPq no país; são quase inexistentes em quadros importantes de institutos renomados, mas têm ido atrás do protagonismo com unhas e dentes

Por Giulliana Bianconi*

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  • A hora e a vez dos comitês femininos

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  • Protagonismo e pioneirismo

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  • Modelos

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  • Representatividade além da heteronormatividade

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Se você acessar hoje o site do mais reconhecido centro de pesquisa de matemática brasileiro localizado fora de uma universidade, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), e for até a página que identifica os pesquisadores permanentes do quadro da instituição vai presumir que a matemática não é para as mulheres. Entre os 49 pesquisadores listados, há apenas uma mulher. O IMPA, fundado em 1952, foi a primeira unidade de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi também a primeira instituição a oferecer pós-graduação em Matemática, ainda em 1962. Possui uma incontestável relevância para a ciência brasileira e é reconhecido internacionalmente, por matemáticos de outros países.

Neste ano, o instituto em questão e a matemática brasileira estão especialmente em evidência, pois em menos de dois meses o Brasil se tornará o primeiro país do hemisfério sul a sediar o mais glamuroso evento do campo: o Congresso Internacional dos Matemáticos (ICM). Para quem não é da área e não tem ideia do que pode ser esse momento, basta dizer que é onde são entregues as medalhas Fields, que significam o reconhecimento aos mais importantes feitos na pesquisa da Matemática. Realizado a cada quatro anos, o ICM tem organização que impressiona. Além do evento principal, com programação que se estende por 10 dias, conta com eventos satélites. Nesta edição, serão 45 eventos deles espalhados pelo Brasil e por outros países vizinhos, como Peru e Argentina. Os satélites são eventos menores, em datas anteriores e posteriores à programação principal, que está concentrada no Rio de Janeiro. O Congresso dos Matemáticos é um daqueles megaeventos da ciência, portanto. Já foram realizadas 27 edições. Em nenhuma delas houve sequer uma matemática brasileira como palestrante convidada.

No ICM 2014, na Coreia do Sul, a iraniana Maryam Mirzakhani (à direita) tornou-se a primeira mulher a receber a medalha Fields; em 2017 ela morreu de câncer mama|Foto: ICM/Divulgação

Em todas as edições do ICM, de 1897 até aqui, os brasileiros, e apenas homens, somaram 16 palestrantes. Na edição que está por vir serão, numa tacada só, 13 pesquisadores brasileiros ou atuantes no Brasil, sendo 4 desses (31%) mulheres – uma delas é a pesquisadora do quadro permanente do IMPA, Carolina Araújo. Estarão ainda nos paineis do Riocentro as matemáticas Tatiana Roque, Helena Nussenzveig Lopes e Claudia Sagastizábal. O protagonismo das mulheres nessa busca por mudança no cenário de desequilíbrio entre gêneros na ascensão e na visibilidade na carreira científica da Matemática é evidente. Com articulações e reuniões constantes promovidas por comitês de gênero ou comitês femininos independentes, elas têm levado para o centro da matemática o seguinte dilema: “O ambiente é masculino porque somos poucas ou somos poucas porque o ambiente é masculino?”. A pergunta está num dos melhores artigos sobre o tema, “O ‘Dilema Tostines’ das Mulheres na Matemática”, escrito por Christina Brech.

Carolina, a única

Mas, afinal, quem é a única pesquisadora com vaga cativa no principal time do IMPA que vai estar também na programação do tradicional Congresso? Ela é uma mulher que estuda, como tantas outras. Que decidiu se dedicar à pesquisa, como tantas outras. Com filho, como tantas outras. Doutora pela Universidade de Princeton, Carolina Araújo, 41 anos, é filha de engenheira. E aí, talvez, esteja uma diferença importante em relação a tantas outras. Diz que nunca ouviu em casa qualquer observação sobre Matemática ser uma carreira difícil para ela por ser mulher. Na formatura da graduação, na PUC-RJ, em 1994, eram apenas ela e um colega homem. “Era meio a meio”, conta, rindo. “Realmente passei pela graduação sem sentir qualquer opressão de gênero e só vim começar a perceber um pouco essas questões já no doutorado”, garante. Em Princeton, a turma era de 15 pessoas. Três mulheres. “Tinha uma competitividade muito grande, uma amizade entre homens que terminava por fazer com que nós, poucas mulheres, tivéssemos que pensar sobre não perder espaço, então foi mais difícil, mas não foi muito difícil por ser mulher, porque eu sempre achei que a Matemática era pra mim também.” [/vc_column_text][vc_column_text]Ela mesma diz que a mãe foi o maior exemplo de que não havia razão para pensar diferente. Araújo construiu sua trajetória buscando e conquistando espaços sem deixar nada a desejar à autoconfiança de um homem branco acadêmico. Nem por isso, passa a ela despercebido o quanto a ciência ainda é masculina. “Temos pouquíssima diversidade na Matemática, é uma imensa maioria de homem branco, sim”.

O matemático Marcelo Viana, que lidera o comitê organizador do ICM 2018, é também diretor-geral do IMPA, cuja sede está no Rio de Janeiro. Um pesquisador com perfil gestor. Com pós-doutorado por Princeton, ele já foi presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), vice-presidente da União Matemática Internacional (IMU), coordenador científico da União Matemática da América Latina e do Caribe (UMALCA). Viana se mostra à vontade para responder questões sobre a baixa presença das mulheres no IMPA e na Matemática durante conversa com a Gênero e Número. Demonstra até certa desenvoltura para abordar o tema, destoando de grande parte dos homens em cargos de liderança em áreas tão masculinas. Ou masculinizadas. Já no início da entrevista, ele pontua que logo que assumiu a presidência do IMPA, em 2016, formou uma Comissão de Gênero. “O comitê foi criado para assessorar a direção do Instituto nessas questões relacionadas à presença das mulheres, que considero extremamente importantes”. No organograma institucional divulgado ao público na plataforma online do instituto, o comitê não consta publicamente. Mas ele conta: “temos a Carolina [Araújo] e mais três colegas nesse comitê.”

A hora e a vez dos comitês femininos

Em 2017 teve início a série de debates “Matemática: substantivo feminino – desafios e perspectivas sobre a questão de gênero”, que segue por 2018 no Brasil organizado por um comitê independente de pesquisadoras. Além disso, o Committee for Women in Mathematics, da União Internacional da Matemática (IMU), uma das organizações internacionais importantes da área, foi estabelecido após o World Meeting for Women in Mathematics (Encontro Mundial de Mulheres na Matemática), evento-satélite do Congresso dos Matemáticos, ganhar corpo em 2010 e em 2014. Neste ano, vai ocorrer novamente, e tem como proposta discutir entre homens e mulheres questões de gênero na disciplina, iniciativas possíveis e perspectivas para o futuro, com atenção especial para a América Latina. Na região, em 2013 foi criada a Comissão de Equidade e Gênero da Sociedade Matemática Mexicana, e em 2014 foi a vez do Coletivo de Mulheres Matemáticas do Chile se firmar.

Enquanto a comunidade científica sênior debate os prejuízos de uma ciência pouco diversa e as matemáticas se organizam para dar mais visibilidade ao trabalho das mulheres nesses espaços importantes do campo, os dados obtidos pela Gênero e Número mostram que o debate precisa incluir a academia numa dimensão mais ampla, e não isoladamente em cada uma das áreas de pesquisa, pois no Brasil o incentivo às mulheres e homens para a pesquisa na Matemática é uma balança que desnivela já na concessão de bolsas de iniciação científica e atinge o completo desequilíbrio quando entram em cena as bolsas de produtividade, um quadro muito semelhante ao que é visto também em outras áreas das Exatas. Em 2018, enquanto 66% das bolsas de iniciação científica da área foram destinadas aos homens, nada menos do que 90% da concessão das bolsas de Produtividade em Pesquisa, o mais alto nível na escala CNPq, ficaram com eles

 

 

 

Veja também: “Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia

Protagonismo e pioneirismo

A professora do Instituto de Matemática da UFRJ Tatiana Roque quase esquece de contar que está como palestrante convidada no Congresso Internacional dos Matemáticos. É somente no final da conversa de mais de uma hora que ela, ao ser indagada se está sabendo do ICM, exclama: “Eu estou como palestrante convidada!”, e continua: “Vou te dizer, isso foi um reconhecimento muito importante, acho que agora eles já entenderam que vão ter lidar comigo mesmo”, fala em tom de brincadeira.

Tatiana Roque, matemática e filósofa Foto: Isabela Kassow

A rotina está mais agitada que de costume. É que Tatiana, que é Academia, é também da Política, onde tem um histórico de militância. Ela lançou dias atrás sua pré-candidatura, e em outubro pleiteia uma vaga de deputada federal. Mas não é sobre isso que vai falar no Congresso dos Matemáticos. Por lá, ela será a Tatiana que desde os anos 90 começou a aproximar na Universidade Federal do Rio de Janeiro as áreas da Filosofia e da Matemática. Embasada em Gilles Deleuze, filósofo francês cuja obra ela abraçou com entusiasmo nas leituras e nos grupos de estudo que aconteciam na casa do professor Cláudio Ulpiano, filósofo que marcou época no Rio de Janeiro, Tatiana foi buscando construir essa ponte entre “Exatas” e “Humanas”, algo que já estava presente na obra de Deleuze. “Ele [Deleuze] trabalha o E e não o OU”, diz ela, sobre sua fonte primeira. Procurando algum lugar na Matemática que não fosse o das demonstrações dos teoremas, ela entendeu que havia, sim, um campo a ser fomentado, e era o da História da Ciência com ênfase na Matemática. “A Matemática é aquilo a que a gente pode recorrer quando as ferramentas do senso comum se esgotaram. Gosto de pensar assim, e por isso sempre preferi pegar resultados da Matemática e criar conexões, entender qual foi o problema posto, como foi resolvido. Isso é mais do campo filosófico”, atesta.

Foi no doutorado, com parte da pesquisa feita na França, onde chegou em 1998, que tudo se encaixou e fez sentido. A defesa da tese, na UFRJ, contou com uma banca de avaliadores híbrida, com filósofos franceses, matemáticos e físicos brasileiros. O orientador formal era ninguém menos que Luiz Pinguelli Rosa, físico já reconhecido à época e hoje um dos principais nomes da área no Brasil. Sua tese foi uma novidade na Academia, recebida com certo entusiasmo pela turma que ocupava a ala mais aberta da pesquisa na Matemática. Mas ainda assim ela lembra que foi ali, naquele período, que viu algumas tentativas de deslegitimação de suas pesquisas. “Não posso dizer que tinha uma questão de gênero nisso, porque havia mulher também que não validava tanto [o que ela fazia], mas sempre tive parceiros muito ponta firme para construir caminhos na Academia”.

Um deles era o físico Luiz Alberto Oliveira, hoje o curador-chefe do Museu do Amanhã, que pesquisava havia algum tempo a filosofia da Física. Hoje super midiático, segue defendendo que os cientistas não devem priorizar o isolamento entre áreas do conhecimento. Eram poucos os colegas nessa linha, e a maioria homem. Anos depois, a pesquisadora estabeleceu, no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática do Instituto de Matemática da UFRJ, o curso de Doutorado em Ensino e História da Matemática e da Física.

Veja também: “Gráfico: Gênero e raça na ciência brasileira

Modelos

Tatiana e Carolina têm sido essas referências que, dizem as pesquisas, fazem falta às mulheres que almejam ingressar em áreas historicamente dominadas pelos homens. A falta de modelos que possam inspirar mais mulheres a abraçar a Matemática – e também outras áreas, como Física e Engenharia – é tratado constantemente com um dos fatores que levam às mulheres a não reconhecerem essas áreas como “espaços apropriados” para elas. A ausência de modelos, entretanto, não é um mistério completo. “Sabe-se que há uma falta de incentivo às mulheres para seguirem nesses campos, e isso a gente correlaciona ao papel que se espera que a mulher assuma na sociedade, mas não podemos afirmar que é somente isso”, diz o presidente do IMPA, Marcelo Viana. Ele destaca que no quadro de alunos da pós-graduação do IMPA a presença das mulheres é de cerca de 20%, algo que soa menos gritante que os 2% que Carolina Araújo representa, estando sozinha no quadro de pesquisadores permanentes.

Viana levanta outro aspecto relacionado a dados e gênero na área,ao falar da Olimpíada Brasileira de Matemática, competição que reúne estudantes dos Ensinos Fundamental, Médio e Universitário das instituições públicas e privadas de todo o Brasil. “No nível 1 da competição, que são estudantes do 6º e do 7º ano,  as meninas conquistam mais medalhas do que conquistam no no nível 2, que são os 8º e 9º anos, e caem mais ainda no Nível 3,  nível médio”, então existe uma barreira aí”, aponta.

Um levantamento feito a partir dos dados da Olimpíada Brasileira de Matemática permite observar essa queda. No primeiro nível, elas ficam com 16% das medalhas. No segundo, com 8%, enquanto no terceiro com 6%.

 

Representatividade além da heteronormatividade

Suzi Camey observa todo esse debate ali bem perto da Matemática, numa área “irmã”, a Estatística. Pró-reitora de Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), possui mestrado em Matemática e doutorado em Estatística. Faz parte do time que passou pela graduação sem se sentir oprimida por qualquer condição de gênero. “Mas eu vou te falar que eu aos 19 anos havia enfrentado toda a minha família ao falar da minha identidade, como mulher lésbica, então isso fez com que outras situações parecessem simples”, conta.

Ela afirma que só começou a entender que havia algo realmente diferente para a ascensão na carreira científica entre homens e mulheres quando se deu conta de que as colegas mulheres, aquelas do mestrado e até do doutorado, não estavam mais “ali do lado”.

Hoje Suzi é uma das mulheres na UFRGS que colocam as questões de gênero em evidência. Faz isso até sem que seja preciso verbalizar absolutamente nada. Casada com uma outra pesquisadora, elas têm duas filhas adotadas. Na academia brasileira, são ainda aquele ponto fora da curva. “Eu costumo dizer em casa que a nossa família tem esse papel de representatividade”.

Suzi Camey com a família em evento político em Porto Alegre| Foto: acervo Pessoal

 

A adoção das meninas veio com os direitos que cabem a servidoras públicas que são mães. A companheira de Suzi conseguiu os seis meses de licença, depois de usufruir de um mês e requerer o restante na Justiça. Elas dividem todos os cuidados das filhas, que hoje têm 7 e 11 anos. “Eu nem imagino como é isso de apenas uma mulher cuidar, como é comum acontecer entre casais héteros nessa sociedade em que as mulheres são tão responsabilizadas ainda pelo cuidar”.

Mesmo sem ter que lidar com a sobrecarga nas tarefas de casa e da família, Suzi está atenta a como a Academia tem lidado com o debate sobre parentalidade. Em maio, participou do I Simpósio de Maternidade e Ciência, realizado PUC-RS. “O impacto da adoção, da maternidade, no meu pensamento foi brutal . Hoje enxergo questões e problemas de forma diferente porque tenho filhas, não tenho qualquer dúvida disso”. Suzi reforça o coro pela ciência diversa e inclusiva. “Temos que pensar sobre isso, e vai além de olharmos os números de mulher na ciência. Os eventos científicos, por exemplo, precisam ter espaço para as crianças”.

Nesse quesito, o Congresso Internacional dos Matemáticos já não vai deixar a desejar. O espaço infantil vai funcionar das 8h30 às 18h, aceitando crianças de 2 a 10 anos. Marcelo Viana diz que desde o início da organização do evento isso estava previsto. “Lá no IMPA também vamos em breve tornar o ambiente mais agradável para as mães, com uma sala de amamentação.”

Veja também: “Sem considerar maternidade, ciência brasileira ainda penaliza mulheres

*Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número.

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Esta reportagem é uma parceria para produção jornalística sobre gênero e ciência entre
Gênero e Número e o Instituto Serrapilheira

Giulliana Bianconi

É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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