“A ‘Casa Grande’ não consegue passar sem a servidão das pessoas negras”

Presidenta da Federação das Trabalhadoras Domésticas e do Sindicato das Domésticas de Pernambuco, Luiza Batista diz que, apesar das reações de repúdio que a morte de Miguel provocou, as elites vão continuar agindo da mesma forma, sem nenhum constrangimento

Por Lola Ferreira*

Ato em memória do menino Miguel, morto no dia 2 de junho, reuniu cartazes com frases da mãe dele, Mirtes | Foto: Izargos de Oliveira / Arquivo pessoal

A tragédia que marcou o bairro de São José, no Recife, no dia 2 de junho, e reverberou em todo o país, tem raízes bem firmes na história do Brasil. A morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos, que caiu do 9º andar após ser abandonado por Sarí Corte Real em um elevador de um prédio de luxo, revela as entranhas de um Brasil marcado pela colonização e expõe a herança escravocrata da relação entre patroa e empregada doméstica. No Brasil, 65% dos trabalhadores domésticos são negros e 93% são mulheres. Um perfil como de Mirtes, mãe do menino, que chora a perda do filho enquanto as lideranças da luta das trabalhadoras domésticas demonstram preocupação com a impunidade.

Luiza Batista, presidenta da Federação das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e do Sindicato das Domésticas de Pernambuco, falou à Gênero e Número na manhã desta sexta. Horas depois, um ato reuniu centenas de pessoas negras, pobres e trabalhadoras para bradar contra o descaso que resultou na morte do Miguel. “Fazemos a movimentação, fazemos atos públicos para gritar, mas sabemos que não vai dar em nada”, avalia Batista. 

A teia de poder que está em torno desse cenário não é realmente esperançosa: Sarí Corte Real é de uma família tradicional de Pernambuco, bem como Sérgio Hacker, seu marido. Ele, apesar de ter um apartamento na região central de Recife, é prefeito de Tamandaré, no litoral sul do estado. “É uma família com dinheiro e isso influencia muito [na impunidade]”, lamenta.

Confira a entrevista completa de Luiza. 

A morte do Miguel é um episódio que evidencia alguns dos vários problemas que as trabalhadoras domésticas denunciam há anos. Na pandemia, alguns novos problemas surgiram. Como você avalia que essa relação patrão-empregado, historicamente problemática, impactou a morte do menino?

Ter um empregado doméstico é uma questão cultural, uma herança que eles [patrões] trazem: ter sempre alguém na residência para fazer as tarefas domésticas, porque na cabeça dessas pessoas o trabalho doméstico é de menor valor. Muito raro você ver uma branca, de olhos azuis e cabelo liso como empregada doméstica. A maioria absoluta é negra. É uma herança que eles trazem do colonialismo e a gente, infelizmente, carrega essa herança maldita que nos pune, porque em um momento como esse não era para Mirtes estar trabalhando. 

Desde o início da pandemia, nós queríamos a trabalhadora doméstica em casa. Desde então, sabemos que tudo que acontece é por isso: a Casa Grande, infelizmente, não consegue passar sem a servidão das pessoas negras. Não podemos usar a palavra escravidão, porque tem uma lei que diz que acabou, mas a Lei Áurea foi para inglês ver. 

Você acha que um caso trágico como esse pode fazer com que as pessoas repensem as relações com as trabalhadoras domésticas? 

Não sou pessimista, mas sou realista. Nada vai mudar, porque em termos de punição, não vai acontecer a mais justa. E a Casa Grande vai continuar, sim, fazendo o que vem fazendo sem nenhum constrangimento, sem nenhum remorso. Eles não têm remorso, porque eles acham que se podem pagar, têm que ter os serviços. Naquela situação, trabalhador doméstico não é essencial. Não é nada demais uma pessoa lavar a própria peça íntima, lavar louça ou forrar a própria cama. O que se perde fazendo isso?

O acidente aconteceu quando a Mirtes saiu para passear com os cachorros, mas isso nem é função dela. Ela foi fazer algo que não é parte de suas funções e deixou o filho, que chorou, naturalmente. Só o filho do branco pode chorar com a ausência dos pais? Nossos filhos também podem.

 

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O fato do Miguel ser um menino negro interferiu na forma como a acusada “cuidou” dele?

Sem dúvidas, ela não se sentiu na obrigação de cuidar. Conversei com dois advogados e, neste caso, houve dolo eventual, porque é como uma pessoa que está dirigindo embriagada e assume o risco de acontecer um acidente. A Sarí assumiu o risco de algum acidente acontecer com a criança porque ela, adulta, o deixou sozinho dentro do elevador. 

Se fosse filho de algum condômino, ela iria chamar, conversar, ver qual era o apartamento, levar aos pais. Ela não ia abandonar. O que ela fez foi abandono, e houve má-fé porque era negro, filho da empregada. Ele perdeu a vida, temos uma mãe desesperada e, para a madame, não vai dar em nada. Vai terminar em uma “pizza” do tamanho de um estádio de futebol. Ela foi detida, pagou uma fiança de R$ 20 mil e está no aconchego do lar. 

Luiza Batista preside a Fenatrad e teme impunidade no caso da morte do menino Miguel | Foto: Arquivo pessoal

A luta de vocês por melhoria nas condições de trabalho fica mais em evidência agora?

No momento em que acontece, as pessoas se juntam, procuram denunciar, mas sabemos que futuramente cai no esquecimento. Não vai mudar a mentalidade da Casa Grande. Infelizmente, pela desigualdade social no nosso país, muitas de nós vão continuar, sim, indo para o trabalho e se submetendo a ficar nos locais de trabalho porque precisam trabalhar, se manter. 

Durante a pandemia, sabemos que muitas trabalhadoras foram praticamente obrigadas a trabalhar, e algumas a dormir nos empregos para não se contaminarem na rua e levarem o vírus para a casa. A trabalhadora ficou num regime terrível porque se viu na obrigação de ficar para não perder o emprego.

 

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Como você avalia o fato da Mirtes ser uma funcionária registrada da prefeitura de Tamandaré e trabalhar como doméstica? 

Não era para estarmos [as domésticas] trabalhando. A medida provisória 936 garante que o empregador pode afastar o trabalhador e o governo pagar parte do salário. Eles poderiam ter feito essa opção. Mas ela estava registrada na prefeitura e isso é uma fraude. O cidadão paga todos os impostos e ainda paga o salário da trabalhadora doméstica que está a serviço do prefeito. Provavelmente por isso, ele não conseguiu fazer a suspensão contratual dela. Ele não quis pagar do bolso dele, e a madame não queria estragar as unhas, lavando louça ou limpando banheiro. É uma sucessão de problemas. 

 

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Esse entendimento de que não haverá punição é bem presente na avaliação das empregadas domésticas. Não há esperanças de que esse caso seja diferente?

Infelizmente, a lei tem peso diferente. Se a pessoa é branca, tem grana, status e posição social, a mão é leve. Se a pessoa é negra e pobre, a mão é muito pesada. Acontece um negócio desses e a gente sabe que, futuramente, não vai dar em nada. Se a situação fosse oposta, a Mirtes não teria esse valor, teria que ser arrecadado em vaquinhas e ninguém conseguiria tanto em um estalar de dedos. Ela estaria presa em flagrante, já estaria na prisão feminina e não estaria numa situação confortável. São situações muito diferentes.

*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número

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Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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