Fachada de uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar | Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Cabelo, maquiagem e até cor do esmalte: modelo militar nas escolas impõe controle dos corpos de estudantes civis

Normas de apresentação pessoal e de comportamento em colégios militares impõem disciplina de quartel a adolescentes; especialistas e ex-alunos refutam suposta relação entre rigidez e desempenho acadêmico

Por Carolina de Assis*

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Em qualquer um dos 60 colégios administrados pelo Comando de Ensino da Polícia Militar de Goiás, alunas e alunos devem seguir as normas de apresentação pessoal detalhadas no Regimento Escolar da instituição. Cabelos (corte militar para eles e presos para elas, ambos proibidos de tingir os cabelos de forma “extravagante” ou “alegórica”), acessórios (brincos só para elas, e que caibam no lóbulo da orelha; nada de cores ou formatos “esdrúxulos”) e até indicações sobre esmalte e maquiagem (“discreta”) estão explicitadas no documento, além das regras sobre como se portar diante de oficiais e colegas de outras turmas (abrir caminho e ceder lugar para militares e alunos mais velhos, por exemplo).

Determinações similares também estão nos manuais do aluno de colégios militares administrados pelo Exército, presentes em 13 cidades do país, segundo a instituição. Nos manuais do Colégio Militar do Rio de Janeiro e no de Porto Alegre, estão listadas inclusive as cores permitidas nas unhas das meninas: branco e rosa claro na unidade do Rio Grande do Sul, e estas mais “tons terrosos claros” e “francesinha” no colégio carioca.

O controle dos corpos, um dos pilares das organizações militares constituídas por homens e mulheres, também é aplicado em colégios geridos pelas PMs, pelas Brigadas de Bombeiros e pelo Exército, e que atendem a crianças e adolescentes. Com o avanço da militarização do ensino, bandeira do governo federal, a Gênero e Número conversou com especialistas e ex-alunos dessas instituições para entender o possível impacto dessas normas sobre o desenvolvimento dos jovens e seu desempenho acadêmico.

Maquiagem X conhecimento

Nos últimos 20 anos, Goiás tem implementado o modelo militar em escolas estaduais que têm sido transferidas para o Comando de Ensino da PM goiana. O processo tem se intensificado nos últimos anos e sido replicado pelo país por governos e pelo Legislativo dos Estados – levantamento da Gênero e Número encontrou nove projetos de lei sobre o tema apresentados apenas em fevereiro, primeiro mês da nova legislatura, em cinco Estados: Ceará, Roraima, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

O modelo também é uma bandeira do governo de Jair Bolsonaro, que em um decreto publicado em seu segundo dia como presidente criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares no Ministério da Educação. Também determinou que a Secretaria de Educação Básica da pasta tem como tarefa “promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital tendo como base a gestão administrativa, educacional e didático-pedagógica adotada por colégios militares do Exército, Polícias e Bombeiros Militares”.

O tenente Naves, auxiliar da coordenação pedagógica do Comando de Ensino da PM de Goiás, disse à Gênero e Número que as normas de “organização pessoal”, além de estarem presentes no Regimento Escolar, também são ensinadas em sala de aula na disciplina de “Noções de Cidadania”. A matéria “vislumbra toda essa formação ética, de caráter, de moral, de gostar da nação e de sua organização pessoal. Então nós ensinamos a organizar o cabelo, a ter uma apresentação higiênica melhor”, afirmou o tenente.

“Nós queremos eles parecidos, semelhantes”, explicou. “Por isso o cabelo tem corte [para os meninos]; o rabo de cavalo, a trança das meninas. Mas nós sempre explicamos. Embora sendo militares, e as pessoas têm uma visão do militar como muito endurecido, a ideia não é essa. O novo causa um certo transtorno, mas logo eles se adaptam, a família entende e acaba que todos gostam do colégio”, disse o oficial.

Ele também afirmou que o foco não é a aparência dos alunos, mas o “conhecimento que eles vão adquirir”, e que as regras de apresentação pessoal auxiliam no aprendizado. “Sabemos que no dia de fazer uma prova, um vestibular, por mais que as meninas sejam vaidosas e possam ir maquiadas, com uma maquiagem mais leve ela com certeza vai fazer a prova com mais tranquilidade”, avalia. “Dizemos para nossos alunos que o que queremos deles são as questões pedagógicas, de ensinamento. Não queremos priorizar o menino ou a menina mais bela; isso é importante, mas mais importante é o conhecimento.”

A cientista social Tatiana Araújo, que realizou pesquisa com mulheres na PM do Rio de Janeiro, disse à Gênero e Número que “desde o treinamento de seus membros, a Polícia Militar investe nos corpos dos policiais (masculinos e femininos) técnicas de dominação, penetrando em sua vida cotidiana”. “A formação policial é feita através de procedimentos técnicos, que exercem um controle minucioso sobre os corpos, através de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos, e por onde as relações de poder são construídas”, afirmou.

Em sua pesquisa, muitas policiais comentaram sobre a dificuldade deste período de formação, “quando um novo sujeito está sendo forjado”, disse a cientista social, que desenvolve no momento seu doutorado na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “Mesmo aquelas que já tinham alguma experiência disciplinar, descreveram o processo como algo sofrido, não só pelo esforço físico, mas também psicológico.”

Embora os alunos de colégios militares não estejam sendo preparados para a corporação ou para as Forças Armadas, as normas nos colégios seguem a ideia do que é “ser militar”, que para os oficiais é “um estilo de vida, em que, claramente, há uma dissolução de fronteiras entre vida pública e vida privada”, disse a antropóloga Cristina Rodrigues da Silva, doutora pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) e pesquisadora sobre o tema.

“O corpo também faz parte desse processo de construção do/a militar, e o uso de fardamentos e regras de conduta e posturas corporais são moldados à estética militar. As normas apresentadas aos alunos e alunas no colégio militar primeiro respondem à essa ideia do ‘ser militar’, como que evocando uma ‘uniformização’ dos corpos”, comentou.

Essa “uniformização” se complexifica quando se trata de adolescentes e sua expressão de gênero e de identidade, afirma Rachel Pulcino, doutora em Educação pela PUC-Rio e professora em uma escola particular no Rio de Janeiro. “Uma experiência marcada pela vigilância do corpo, da forma como esse corpo vai se expressar, impacta na forma em que eu vou me constituir enquanto menino ou menina, porque isso vai impactar na construção da minha singularidade enquanto eu estou naquele espaço.” Tal limitação “pode gerar uma visão mais reprimida das relações e uma visão mais estereotipada dos gêneros como uma ideia mais organizada, mais ‘limpinha’ – no sentido de menos livre – do que é menino e menina”, avalia.

Primeiro dia de aulas no CED 01 da Estrutural, uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar.

Repressão e sobrevivência

V., que estudou em um colégio militar do Exército nos três anos do Ensino Médio, entre 2003 e 2005, disse à Gênero e Número que o controle e a vigilância sobre seu corpo e as normas disciplinares do modelo militar a levaram a deixar a instituição antes de completar o último semestre do terceiro ano. “Sair do colégio foi muito importante para mim. Não era exatamente um espaço acolhedor”, contou ela, que optou por estudar no colégio para ter acesso a uma formação de melhor qualidade do que a que havia encontrado no ensino público estadual.

“A gente tem que passar por alguns rituais que para mim não tinham o menor sentido enquanto adolescente. Era um negócio que me aborrecia profundamente: entrar em forma, ter que bater continência para professor, ter todo um vocabulário específico para lidar com as pessoas, e o controle sobre o corpo que me marcou muito”, contou.

Como foi a primeira colocada na prova de admissão para o colégio, V. recebeu dos oficiais o apelido de 01. “Todos os oficiais responsáveis pelo corpo de alunos sabiam quem eu era e demonstraram a princípio algo que me pareceu empatia, mas que quando eu saí do colégio percebi que era controle mesmo. Sempre que eu andava pelo colégio alguém me chamava a atenção pelo meu cabelo ou falava do meu sapato, por exemplo.”

Ela disse que não tinha uma expressão de gênero muito feminina e que as oficiais do corpo técnico do colégio perguntavam porque ela não usava maquiagem ou brincos e não pintava as unhas. “Elas diziam ‘Por que você não passa um batom? Quer experimentar esse lápis de olho?’ Mas as meninas que usavam batom vermelho eram repreendidas”, lembra. “É um lugar muito ambíguo essa norma padrão. Chamavam a atenção das meninas que se maquiavam demais ou usavam acessórios chamativos e das que não usavam também. É todo um movimento para que você se enquadre dentro dessa faixa muito estreita que o manual escrito e o manual não escrito entendem como performance de feminilidade adequada.”

V. contou que tinha uma colega que “afrontava” as regras do colégio com piercings e que em certo momento raspou o cabelo, e que por isso passou a ser alvo de chacota de alguns oficiais. “Começaram a questionar, em tom jocoso, se ela poderia usar brinco, já que ela estava usando o cabelo raspado, como se uma coisa tivesse a ver com a outra, afinal o código [do colégio] diz que meninos não podem usar brinco e se ela decidiu usar o cabelo como um menino, então significaria que ela não podia usar brinco”, contou.

Essa colega, L., disse à Gênero e Número que entrou no colégio aos 10 anos de idade, na então 5a série do Ensino Fundamental, e também abandonou a instituição antes de completar o Ensino Médio. “O colégio foi um ambiente que me fez muito mal por muito tempo e um dos motivos era justamente a censura e a padronização de gêneros”, afirmou.

Ela contou ter tido depressão e que deixar o colégio foi uma recomendação médica. “Passei por toda minha fase de identificação de gênero e consciência sobre sexualidade naquele ambiente. De certo modo, meu incômodo com o cabelo e me desfazer dele me ajudou a me sentir confortável nessa fase de desapego da ideia que eu tinha de feminino”, disse L.

Sua vivência informa sua posição crítica ao modelo militar nas escolas. “Quanto menos a gente se sente livre para se expressar, para se apresentar identitariamente, mais complicado é”, avalia. “Não poder usar uma roupa que te deixe mais confortável e confiante, não poder dispor livremente sobre teu corpo e tuas escolhas no ambiente escolar é bem repressor. Acho que o medo até pode criar uma sensação de falsa disciplina, mas as consequências negativas são muito nocivas.”

Para a psicóloga Gabriela Bordini, doutora pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) com pesquisa sobre percepções de gênero e sexualidade entre adolescentes e jovens universitários, “uma vez que a escola se destaca como um espaço de interação, ela pode contribuir para a ampliação das visões sobre o homem e a mulher”.

“No entanto, se a escola é um ambiente rígido, que obriga o aluno a ter uma aparência padrão e reprime as manifestações de diferentes identidades dos estudantes e dos profissionais que ali trabalham, ela acaba apenas reforçando estereótipos”. Além disso, “na adolescência, momento em que geralmente refletimos sobre quem somos, aqueles que se desviam dos padrões culturais podem entrar em um processo de sofrimento” e desenvolver depressão, ansiedade e risco de suicídio, disse a psicóloga.

Debaixo da boina

Por outro lado, a limitação também abre espaço para a crítica, observou Pulcino, que pesquisou percepções de docentes e estudantes de escolas municipais do Rio de Janeiro sobre gênero e sexualidade. “A temática de gênero hoje em dia circula com muita facilidade, até pelas redes sociais. Então acho que mais interessante até do que pensar o quanto esses jovens se sentem reprimidos, é pensar o quanto eles vão criando estratégias, como conseguem resistir e dar vazão a essa expressão.”

D., que foi aluno de um colégio militar do Exército entre 1999 e 2002, da então 8ª série do Ensino Fundamental até o 3º do Ensino Médio, falou à Gênero e Número sobre uma dessas estratégias. “A galera fazia um corte em que você colocava a boina e cortava em volta, mas em cima ficava mais cheio. Desde que a parte de baixo estivesse na altura da máquina 2 e com o pé [do cabelo] disfarçado, tudo bem, porque você colocava a boina e escondia e os monitores não encrencavam.”

Nos colégios militares, os meninos têm um “cartão de cabelo”, que é periodicamente assinado por oficiais que fiscalizam se o corte está em dia – o cabelo deve ser cortado quinzenalmente – e dentro do padrão militar. D. disse que “achava um saco” ter que manter o corte, mas que não se incomodava tanto. “Tudo bem, era só a chatice de ter que ir no barbeiro e cortar”. Outros colegas “ficavam putos de ter que cortar o cabelo o tempo todo e queriam deixar o cabelo maior, mas não era grande coisa. Tenho um colega que assim que deixou o colégio militar virou o Tarzan, o cabelo dele ficou imenso”, contou.

J., ex-aluna de um colégio militar do Exército entre 1999 e 2005, da antiga 5ª série do Ensino Fundamental até o 3º do Ensino Médio, também disse ter colegas que assim que saíram do colégio passaram a ousar mais em suas expressões de gênero e aparência pessoal. “É muito forte entre os meninos deixar o cabelo crescer, pintar o cabelo, botar brinco [ao sair do colégio militar]”, comentou.

Diferentemente das outras ex-alunas ouvidas pela Gênero e Número, J. não teve uma experiência tão traumática em relação às normas do colégio. Ela afirmou que a “uniformização dos corpos” não fazia tanta diferenciação entre os gêneros no período em que estudou na instituição e que uma de suas possíveis consequências é que alunas e alunos se mostravam mais na “atitude”. “Isso não tem como perceber pelas roupas, e sim pelo jeito como você se coloca e pessoas com quem você se relaciona, inclusive, está muito mais ligado às suas ideias e forma de ser do que à sua aparência”.

Primeiro dia de aulas no CED 01 da Estrutural, uma das escolas públicas do DF onde foi implementado o modelo cívico-militar.

Os fins e os meios da militarização

O argumento recorrente para a adoção da gestão militar do ensino usado por apoiadores do modelo dentro e fora do governo é que ele seria o responsável pelo desempenho acadêmico superior dos alunos dessas instituições perante estudantes da rede pública civil. No entanto, estudos apontam que o desempenho acadêmico estaria mais ligado ao perfil socioeconômico dos alunos e ao investimento financeiro por estudante, ambos mais elevados do que os de alunos de escolas públicas.

“Não é só uniformizar as crianças, jogá-las em uma sala e fazê-las bater continência para todo mundo”, comentou J., que hoje trabalha na área da educação. Ela considera que o alto desempenho de alunos de colégios do Exército está muito mais ligado à seleção por prova de admissão, à melhor estrutura das escolas, à maior remuneração aos professores e corpo técnico e à maior exigência de desempenho escolar do que em colégios civis.

V. também se diz “preocupada” com o avanço do modelo pelo país. “A grande vantagem do colégio militar [em que estudou] não é ele ser militar, mas sim ter um padrão de ensino diferenciado. Esse padrão de ensino você não consegue transpor para escolas públicas apenas mudando as regras de disciplina”, afirmou.

Até porque mesmo as escolas civis também são forjadas no “discurso da uniformidade”, comentou Pulcino. “É muito recorrente na educação o discurso de ‘somos todos iguais’. Esse discurso da igualdade muitas vezes solapa diferenças, e a instituição escolar acaba trabalhando para ocultar as singularidades”, comentou. “Esse discurso é importante para pensar em direitos, nas nossas lutas políticas diárias. Ao mesmo tempo, quando falamos de construção identitária, ele vira um terreno arenoso se eu coloco que todos têm que ser iguais no comportamento e na forma em que vão se constituir enquanto sujeitos.”

Bordini tem uma crítica similar: “Igualdade de direitos ou de oportunidades não quer dizer igualdade de comportamentos ou de modos de viver.” O contato com o que é diferente de si é fundamental para o desenvolvimento psicológico e moral de cada um, afirmou a psicóloga. “Algumas vezes, por trás da ideia de uniformização, o que realmente está presente é o objetivo de apagar as diferenças. Quem não se permite questionar e refletir sobre sua identidade e modo de viver pode se sentir ameaçado pela presença de pessoas que mostram que há outras formas de ser no mundo, diferentes do padrão”, avalia.

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A Gênero e Número entrou em contato com o Ministério da Educação sobre os planos para o fomento a escolas cívico-militares, assim como com os colégios em que estudaram os ex-alunos que contribuíram para essa reportagem, mas não obteve resposta até a publicação.

*Carolina de Assis é editora da Gênero e Número. Colaborou a analista de dados Flávia Bozza Martins.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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