Benedita da Silva: “Ninguém faz intervenção na Vieira Souto”

Primeira mulher negra e da favela eleita para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, nos anos 80, Benedita da Silva construiu sua trajetória no Partido dos Trabalhadores, onde está até hoje. Aos 75 anos e no quarto mandato como deputada federal  – os primeiros foram consecutivos entre 1987 e 1995, e desde 2011 ocupa novamente a cadeira – ela também foi senadora e a primeira governadora no estado, quando ascendeu da posição de vice, no então mandato de Anthony Garotinho, em 2002. Como mulher e parlamentar que conhece profundamente a realidade sociopolítica local, Benedita conversou com a Gênero e Número sobre como enxerga o momento de intervenção federal, período agora marcado também pelo assassinato da vereadora Marielle Franco

Da Redação da Gênero e Número

Benedita da Silva discursa em comemoração do Dia Internacional da Mulher (03/2018). Foto: Geraldo Magela / Agência Senado

Gênero e Número – Como a senhora está acompanhando e vivendo esses dias tão tumultuados após o assassinato de Marielle?

Primeiro, sinto uma imensa perda, principalmente para as mulheres negras. Estou muito abalada, muito ainda tocada por isso tudo. Temos poucas representações nas Assembleias Legislativas, na Câmaras de Vereadores, e nossa trajetória se constrói em cima de muita luta, de muito esforço, porque ninguém chega olhando pra gente nos achando belas e maravilhosas. Pelo contrário. Nós não temos as características exigidas por esse mundo masculino, branco e machista. Então é claro que todas nós, e são todas mesmo, porque se alguma disser que não passou na pele, eu posso garantir que está mentindo, lutamos muito muito para avançar na política, e fazemos a diferença nos lugares onde chegamos, mas quando você tem uma figura que não correspondente ao imaginário racista e machista há um enfrentamento. Por saber que é tão difícil avançar, a gente sente como se tivessem metralhado todas as mulheres negras diante do que aconteceu com Marielle.

Como parlamentar, mulher negra e que morou por tanto tempo na favela, portanto com uma trajetória que tem semelhanças com a de Marielle, como vê o cenário para essas mulheres negras que estão na política?

Como parlamentar, eu estou com medo e preocupada. Eu recebi a notícia da execução da Marielle no Fórum Social Mundial, em Salvador, onde eu estava também para a reunião de trinta anos do Fórum de Mulheres Negras, evento em que eu havia estado, como uma das organizadoras. Quando a primeira mulher começou a falar na nossa reunião sobre tudo o que já fizemos nesses trinta anos, a gente se olhava, como se perguntássemos como fizemos tanto e terminamos essa reunião dizendo que o momento tão difícil não ia nos tirar a esperança de lutarmos por um mundo menos desigual. Saí de lá e fui pro hotel, onde tive a notícia da execução de Marielle. Foi como se apagassem todas as luzes no meio de uma noite. Mas a gente sente medo e segue. Eu quero fazer discussão de identidade dentro do debate sobre mais mulheres na política, quero trabalhar esse compromisso. Conheci Marielle pequena, quando eu fazia trabalho na Maré [Complexo da Maré], em conjunto com a Pastoral. Foi um orgulho enorme vê-la crescer e se tornar uma liderança, ver as pessoas acompanhando Marielle. Então esse é nosso objetivo. Medo a gente tem, sim, eu tenho medo que comecem a matar dessa forma as mulheres negras lideranças como já matam nossos filhos, nossa juventude negra, mas nesse momento temos que transformar nosso luto em luta.

Após a morte de Marielle, temos visto uma onda de acusações, de boatos que tentam manchar a imagem e a memória dela. Por que, na sua opinião, isso tem acontecido dessa forma tão violenta?

É uma tentativa de desconstrução de imagem. Eu também me pergunto: mas por que isso? Eu não vejo acontecer nem mesmo com os bandidos, quando é bandido homem, com homem não acontece. Eles dão é grandes entrevistas, publicam livros. Mas a mulher não. Mulher negra, quando ocupa um lugar de fala como ela, como vereadora, é uma denúncia, joga por terra o mito da democracia racial, e então nos vemos no meio de processos violentos como esse.

Nos anos 80, a senhora também fez parte da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, inclusive como primeira mulher negra a ocupar esse cargo na cidade. Anos depois, ocupou a cadeira do Governo do Estado. As opressões diminuíram à medida em que avançou na vida política?

Eu sofri muito. Sou uma mulher vitoriosa, não individualmente apenas, porque é vitoriosa a proposta que eu abracei, a bandeira que eu ergui, mas a gente, mulher negra, também vive uma solidão na política, e isso é doído. Eu fico a imaginar como Marielle, mulher, negra, bissexual, criando filho, passou por todo o processo de discriminação e seguiu galgando aqueles espaços, mas quanto mais você galga, mais você sente na pele, mesmo que você não fique curtindo aquilo ali, que você vá lutando e enfrentando. E no momento em que o racismo atravessa o momento eleitoral, vemos as piores disputas. No caso de uma mulher negra, da favela, como também é o meu caso, é incrível como a crueldade do racismo, do preconceito atravessa esse processo eleitoral. Eu lembro que quando fui eleita, ouvi assim que cheguei na Câmara que eu era uma demagoga, e desde assédio sexual até discriminações menores, quase imperceptíveis, como ficar com o último gabinete, tudo isso eu vivi.

Benedita foi a primeira senadora negra do Brasil. Na foto, fala durante reunião no Senado para discutir novos direitos para empregadas domésticas. Foto: José Cruz / Agência Brasil (26/04/2013)

Os assédios eram constantes?

Na Câmara foi bastante. E eu, uma mulher casada, bem casada, porque sempre fui bem casada, sempre escolhi os homens que queria ficar, e os caras faziam apostas sobre quem ia sair comigo, me faziam esperá-los em diversas ocasiões, sempre esperando uma submissão. E não só na Câmara, mas no Executivo, e sempre muito assédio moral também.

Quando eu assumi o Governo do estado por nove meses, foi horrível, até mesmo a imprensa me trazia perguntas inacreditáveis. Me perguntavam como eu iria lidar com os tapetes persas, com as relíquias do Palácio onde eu moraria com a minha família, com meus netos. Eu respondia que eu tinha passado a maior parte da vida limpando tapetes como aqueles, cuidando de relíquias dos que as possuíam, mas além disso eu tinha que dizer que a gente, mulher pobre, tinha educação e também podia criar nossos filhos pra ter contato com belo, com a arte. Eu sempre digo que eu não tenho compromisso com a pobreza, que eu tenho compromisso com os pobres, com as minorias, eu sou mulher negra, evangélica, ex-favelada, mas sempre respeitei em todos os espaços a pluralidade.

Como deputada federal que tem participado de reuniões da Comissão da Câmara que acompanha a intervenção federal no Rio de Janeiro, o que a senhora pensa a respeito do que está ocorrendo na segurança pública do estado?

Ninguém faz intervenção na Vieira Souto [avenida do Leblon, um dos símbolos da zona sul carioca], nos apartamentos. Eu quero saber qual é a política pública de segurança para as pessoas que estão na favela, entre tiroteios. O que a gente vê acontecer todos os dias é uma violência sem fim. Matam jovens, armam tiroteios, a polícia diz que foi o bandido, o bandido diz que foi a polícia. Tentam fazer parecer que essas pessoas não têm direito à proteção, a qualquer privacidade, com invasão de casas cotidianamente. Essa intervenção não dá qualquer segurança ou garantia à população negra, pobre, que mora nas favelas.

A senhora espera que o assassinato de uma mulher negra parlamentar da favela, com a trajetória da Marielle, possa repercutir de forma positiva no debate sobre esses direitos violados e nas eleições de 2018?

Eu espero, e eu quero, que esse sangue derramado, tanto dela quanto o do motorista Anderson, faça a gente seguir com esse debate constantemente, não apenas nas eleições. Que a gente vá ao Supremo [STF], com as pautas que dizem respeito ao sistema prisional e, logo, às pessoas negras, às mulheres e homens negros, principalmente. A Marielle não era uma mulher negra sozinha. Nós somos milhares e queremos milhares de nós ocupando espaços políticos e estamos discutindo isso nos nossos partidos também, essa participação da mulher negra. Não me importa se fulano é ótimo, se tem pautas pra gente. Eu também sou, eu também vou batalhar, e espero uma outra eleição. 

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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